Sejamos honestos: a maioria de nós tem uma visão um tanto idealizada da igreja primitiva. Existe uma tendência, especialmente entre os mais velhos, de enxergar o passado com lentes cor-de-rosa, suspirando por um tempo em que "as coisas funcionavam melhor".
É como se as gerações passadas fossem povoadas por santos perfeitos, esquecendo que o coração humano, com suas fraquezas e inclinações, permanece o mesmo ao longo da história. Precisamos ter cuidado para não idealizar o passado, e isso se aplica de forma especial à igreja.
Um olhar atento à igreja de Corinto é o remédio perfeito para essa ilusão. Longe de ser um paraíso de harmonia, a comunidade cristã de Corinto era um caldeirão de problemas: divisões intensas, partidarismo, conflitos que se manifestavam até na Ceia do Senhor, e sérios desvios morais, a ponto de alguns tolerarem a imoralidade sexual.
Diante de um cenário tão caótico, o que esperaríamos do apóstolo Paulo? Uma carta cheia de acusações e queixas? Surpreendentemente, não é assim que ele começa. Sua abordagem revela uma sabedoria pastoral profunda que serve de modelo para nós até hoje.
A pergunta que este estudo buscará responder é: como Paulo confronta a divisão de uma forma que busca a cura em vez da condenação, e o que podemos aprender com seu método para lidar com as fraturas em nossas próprias comunidades e corações?
1. A graça precede a correção
Antes de qualquer repreensão, Paulo estabelece um fundamento de graça e identidade. Ele se dirige à igreja "de Deus" em Corinto, chamando seus membros de "santificados em Cristo Jesus" e "chamados para ser santos". Apesar de todos os seus erros visíveis, a primeira coisa que Paulo faz é lembrá-los de quem eles são em Cristo.
Eles foram tirados das trevas, consagrados para o serviço de Deus e feitos parte de uma comunhão global que invoca o nome do Senhor. Ele não começa com uma maldição, mas com uma bênção: "Graça e paz a vós outros, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo".
Mais do que isso, Paulo dá graças a Deus por eles. Ele não agradece *aos coríntios*, mas a *Deus* pela graça manifestada na vida deles. Reconhece que, em Cristo, eles foram enriquecidos "em toda palavra e em todo conhecimento", não lhes faltando dom algum. Mesmo em meio à miséria espiritual, Paulo consegue enxergar a obra da graça de Deus.
Essa abordagem não é mera formalidade. Paulo está nos ensinando um princípio fundamental: a verdadeira correção nasce da afirmação da identidade e da gratidão pela graça de Deus. Ele não confia na fidelidade dos coríntios, mas na fidelidade de Deus, que os "confirmará até o fim" para que sejam irrepreensíveis no dia de Cristo. Antes de apontar o que está errado, ele celebra o que Deus já fez de certo.
Aplicação
- Em seus relacionamentos: Quando precisar corrigir um filho, um cônjuge ou um amigo, experimente começar afirmando o valor que essa pessoa tem para você e reconhecendo suas qualidades. A correção recebida a partir de um lugar de amor e afirmação é muito mais eficaz do que a crítica pura e simples.
- Na vida da igreja: Quando você observar um problema em sua comunidade, resista à tentação de apenas reclamar. Comece agradecendo a Deus pelo que Ele está fazendo naquela igreja e por meio daquelas pessoas. Uma atitude de gratidão muda nossa perspectiva e nos torna agentes de cura, e não de mais divisão.
- Para si mesmo: Quando você pecar, lembre-se de que a graça de Deus também precede a sua própria autocondenação. Antes de se afundar na culpa, lembre-se de quem você é em Cristo: um santo, justificado e amado. É essa verdade que nos dá força para o arrependimento genuíno.
2. A sabedoria do mundo divide, a loucura da cruz une
Após estabelecer o fundamento da graça, Paulo vai direto à raiz do problema: "cada um de vós diz: Eu sou de Paulo, e eu, de Apolo, e eu, de Cefas, e eu, de Cristo". A igreja estava se fragmentando em facções, cada uma se apegando a um líder humano como seu estandarte.
Esse comportamento não surgiu do nada. Era um reflexo da cultura ao redor. Os gregos eram fascinados pela sabedoria (sophia) e se orgulhavam de seguir "escolas" de filósofos famosos como Platão ou Aristóteles. Os judeus, por sua vez, também tinham suas divisões, seguindo rabinos renomados como Hillel e Shammai. Os coríntios estavam, simplesmente, trazendo a mentalidade do mundo para dentro da igreja.
Paulo ataca essa mentalidade de frente com uma série de perguntas retóricas que expõem o absurdo da situação: "Acaso, Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado em favor de vós ou fostes, porventura, batizados em nome de Paulo?". A resposta é óbvia. Há apenas Um que foi crucificado pela igreja e em cujo Nome fomos batizados: Jesus Cristo.
O apóstolo, então, contrapõe a "sabedoria do mundo", que gera orgulho e divisão, com a "loucura da pregação" da cruz. Para o mundo, um Messias crucificado é um escândalo e uma tolice. Os judeus queriam sinais de poder; os gregos buscavam sabedoria eloquente. A cruz não oferece nenhum dos dois. Ela parece fraqueza e insensatez.
Mas é precisamente nessa "loucura" que reside o poder de Deus para a salvação. Deus escolheu o que o mundo considera louco, fraco e insignificante para envergonhar os sábios e fortes. A própria composição da igreja de Corinto era a prova disso: "não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento".
A igreja é a comunidade dos "fracassados" aos olhos do mundo, escolhida por Deus para que nenhuma carne se glorie na sua presença. A cruz demole nosso orgulho e nos coloca a todos no mesmo nível, ao pé de um Salvador crucificado. É por isso que o evangelho é o antídoto definitivo para a divisão.
Aplicação
- Examine seus "heróis" da fé: É ótimo aprender com grandes pregadores e teólogos, mas tenha cuidado para não transformar sua preferência em uma identidade de partido. Você se define mais pela teologia de Calvino ou pelo seu pertencimento a Cristo? Sua lealdade está com uma denominação ou com o Corpo de Cristo universal?
- Abrace a simplicidade do evangelho: Muitas vezes, as divisões surgem de debates complexos sobre pontos secundários da teologia. Volte sempre para o centro: Cristo e Ele crucificado. É essa verdade simples que nos une e nos salva.
- Valorize a diversidade em sua igreja: Em vez de se juntar apenas com pessoas que pensam como você, busque comunhão com os "diferentes". Deus une o "fraco" e o "forte", o "sábio" e o "simples" para formar um corpo, demonstrando que a unidade não está na uniformidade, mas em Cristo.
3. Líderes são servos, não donos da fé
A exaltação de líderes humanos era a causa direta da divisão em Corinto. Para corrigir isso, Paulo redefine radicalmente o papel da liderança cristã. Ele pergunta: "Quem é Apolo? E quem é Paulo?". A resposta é surpreendente para a mentalidade da época: "Servos, por meio de quem crestes".
No mundo greco-romano, ser um servo era uma posição desprezada, tarefa de escravos. Líderes eram mestres, dominadores. Paulo se coloca, e a Apolo, nessa posição humilde. Ele usa a famosa analogia agrícola:
1 Coríntios 3.6-7
Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento.
Líderes são apenas instrumentos nas mãos de Deus. Um planta, outro rega, mas nenhum deles pode fazer a semente brotar. O poder não está no servo, mas no Senhor da seara. Por isso, Paulo declara sem rodeios: "nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega". Gloriar-se em homens é, portanto, gloriar-se em "nada".
Ele continua com outra imagem, a da construção. Paulo, como um arquiteto prudente, lançou o único fundamento possível: Jesus Cristo. Outros edificam sobre esse fundamento, mas cada um deve ter cuidado *como* edifica. O trabalho de cada líder será provado pelo fogo no dia do juízo. Alguém pode construir com "ouro, prata, pedras preciosas" (ensino fiel e duradouro) ou com "madeira, feno, palha" (doutrinas vazias, egocêntricas e mundanas).
O fogo revelará a qualidade da obra. Se a obra permanecer, o obreiro receberá galardão. Se for queimada, ele "sofrerá dano; entretanto, o tal será salvo, todavia, como que através do fogo". É uma imagem sóbria: mesmo um líder genuinamente salvo pode ver todo o seu ministério se transformar em cinzas se ele foi construído sobre a base errada, como a busca por popularidade ou a promoção de si mesmo.
Aplicação
- Ore por seus líderes como servos: Em vez de colocar seus pastores e líderes em um pedestal ou de criticá-los como se fossem CEOs, ore por eles como servos que precisam da força de Deus para plantar e regar fielmente. Peça a Deus que lhes dê humildade e fidelidade.
- Avalie o ensino que você consome: O ensino que você ouve e lê edifica você sobre o fundamento de Cristo? Ele o torna mais dependente de Deus ou do pregador? Ele produz o fruto do Espírito ou o orgulho de pertencer a um grupo "mais esclarecido"?
- Sirva sem buscar reconhecimento: Seja você um líder oficial ou não, todo cristão é chamado a servir. Realize seu serviço "como para o Senhor", lembrando que é Ele quem dá o crescimento e a recompensa final, não a aprovação dos homens.
4. Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo
Paulo encerra seu argumento contra a divisão com uma das declarações mais impressionantes de toda a Bíblia. Ele inverte completamente a lógica dos coríntios. Eles estavam se empobrecendo ao dizer "eu sou de Paulo", limitando-se a um único servo. Paulo lhes diz que essa atitude é uma tolice, porque, na verdade, tudo já lhes pertence.
"Portanto, ninguém se glorie nos homens; porque tudo é vosso: seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, seja o presente, seja o porvir, tudo é vosso" (1 Coríntios 3:21-22).
A lógica é de tirar o fôlego. Os líderes que eles usavam para se dividir não eram donos de facções, mas servos dados por Deus para abençoar a *toda* a igreja. Discutir sobre quem era o melhor era tão absurdo quanto um herdeiro de uma vasta propriedade brigar por um único tijolo. Por pertencermos a Cristo, somos herdeiros de tudo.
Mas essa herança gloriosa vem com uma condição que aniquila o orgulho: "e vós, de Cristo, e Cristo, de Deus". Nossa identidade e nosso valor não vêm de nós mesmos, nem dos líderes que admiramos. Nossa identidade está no nosso pertencimento. Somos propriedade de Cristo, que por sua vez é de Deus. A glória não está em quem nós seguimos, mas em quem nos possui.
Essa é a resposta final à pergunta que atormentava a igreja de Corinto: "o que você tem que não tenha recebido? E, se o recebeu, por que se vangloria, como se não o tivesse recebido?" (1 Coríntios 4:7). Tudo – nossos dons, nossos líderes, nossa salvação – é graça. Diante de um presente tão grande, a única resposta apropriada não é o orgulho que divide, mas a gratidão que une.
Aplicação
- Viva como um herdeiro, não como um órfão: A mentalidade de facção é uma mentalidade de escassez, de lutar por migalhas. Lembre-se de que, em Cristo, você tem acesso a uma herança infinita. Isso o libertará da inveja, da competição e da necessidade de se provar.
- Receba de todo o corpo de Cristo: Não se limite a ouvir apenas os pregadores da sua "tribo". Com discernimento, aprenda com a riqueza que Deus distribuiu por todo o Seu corpo. Um cristão de outra denominação não é um rival, mas um irmão de quem você pode receber bênçãos.
- Pratique a gratidão radical: A cura final para o orgulho é a gratidão. Reserve um tempo para listar tudo o que você recebeu de Deus: sua vida, sua família, sua igreja, seus dons e, acima de tudo, a salvação em Cristo. Uma pessoa verdadeiramente grata não tem espaço no coração para o orgulho que divide.
Conclusão
A igreja de Corinto nos serve de espelho, refletindo as mesmas tendências à divisão que encontramos em nossos corações e comunidades hoje. A resposta de Paulo, no entanto, não é um programa de cinco passos para a unidade, mas um chamado radical para voltarmos ao evangelho.
Ele nos ensina que a unidade não é construída sobre a uniformidade de opiniões, mas sobre o fundamento da graça. Ela não é nutrida pela sabedoria humana, que infla o ego, mas pela "loucura" da cruz, que nos humilha a todos. Ela não é mantida pela exaltação de líderes, mas pelo reconhecimento de que todos, líderes e liderados, são servos de um único Senhor.
E, finalmente, a unidade floresce quando deixamos de nos gloriar em nós mesmos ou em homens e passamos a nos gloriar na verdade suprema: tudo é nosso, porque nós somos de Cristo, e Cristo é de Deus. Que essa verdade nos cure, nos una e nos impulsione a viver, não como facções rivais, mas como o único e santo templo de Deus no mundo.