Texto básico: Atos 1.8; 8.1-4; 13.1-4; 18.1-4
Introdução
Estamos habituados a entender a responsabilidade missionária como restrita aos missionários propriamente ditos, e a não enxergarmos que parte dessa tarefa deve ser exercida pelos chamados "cristãos comuns".
Também somos tentados a pensar em vocação apenas relacionando-a ao ministério pastoral, sem ampliar esse conceito a uma filosofia de trabalho, que é a ideia bíblica.
Estudemos a relação bíblica entre esses conceitos e analisemos a importância dos chamados missionários fazedores de tendas. O crente deve refletir sobre este assunto com uma pergunta em seu coração: como eu posso ser um missionário?
I. A vocação missionária de toda a igreja
Logo no início do livro de Atos, Lucas apresenta uma correção feita pelo Senhor Jesus ao foco das preocupações dos seus discípulos. Os mesmos estavam interessados em saber qual seria a época na qual Cristo haveria de restaurar o reino a Israel (At 1.6).
O Senhor os advertiu que, ao invés de ficarem preocupados em datar a sua volta, que era tarefa exclusiva do Pai, eles deveriam se concentrar no testemunho a ser dado sobre Cristo e a sua obra. Como discípulos pessoais do Filho de Deus, deveriam compartilhar essa mensagem desde Jerusalém e ampliando-se até que o testemunho cristão alcançasse os "confins da terra".
O testemunho a Jerusalém ocorreu assim que se cumpriu a promessa de Pentecostes, pois, já naquela ocasião, o apóstolo Pedro anunciou com intrepidez a Palavra de Deus e houve a conversão de cerca de três mil pessoas (At 2.37-41).
Mas não foram apenas os apóstolos que semearam o evangelho e colheram pessoas para o reino de Deus; os cristãos anônimos, no cotidiano de suas vidas, também deram testemunho da sua fé em Cristo. Eles igualmente assistiram as conversões espirituais que Deus estava fazendo por intermédio deles (At 2.46,47).
Não demorou muito, a liderança da igreja começou a ser perseguida pelas autoridades civis; então, reunida, a igreja orou rogando a Deus intrepidez para não se intimidarem diante das ameaças sofridas, mas perseverarem anunciando o evangelho (At 4.29,30).
Outros líderes cristãos, além dos apóstolos, também anunciavam o evangelho com autoridade e poder, como fez Estêvão antes de ser apedrejado, acusado de proferir blasfêmias (At 6.8-7.60).
Contudo, a igreja não se mobilizava para testemunhar além dos limites de Jerusalém, o que só ocorreu após uma grande perseguição nessa cidade, a qual dispersou os cristãos e espalhou o seu testemunho por toda a Judéia e Samaria (At 8.1,4).
O esforço consciente para alcançar os confins da terra só veio por iniciativa da igreja de Antioquia, ao enviar Paulo e Barnabé para as missões pelo mundo afora (At 13.1-4), tarefa esta que se desenvolveu muito bem, pela graça de Deus.
Desse relato panorâmico de Atos, vemos que não apenas os líderes testemunhavam sobre Cristo Jesus, mas os cristãos em geral também o faziam. Eles foram responsáveis por grande parte da expansão do evangelho do Senhor pelo mundo afora.
A própria igreja nasce vocacionada para o testemunho cristão (1 Pe 2.9,10). Nossa fé não deve ficar escondida, mas deve ser anunciada verbalmente (Rm 10.9,10), não apenas como uma pública profissão de fé, da qual não devemos nos envergonhar (Mt 10.32,33), mas, acima de tudo, como o cumprimento da nossa vocação testemunhal.
Segundo as palavras do próprio Senhor Jesus, "mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra" (At 1.8).
Assim, temos a certeza de que o anúncio do evangelho por parte de cada cristão é o recurso do qual o Senhor se utiliza para chamar os que preparou para a salvação (Rm 1.16). Ainda que saibamos que nem todos darão crédito ao evangelho, as Escrituras nos ensinam que devemos nos esforçar para enviar pessoas que o anunciem aos perdidos (Rm 10.13-17).
Esse testemunho deve ser dado não apenas por oficiais ordenados e enviados (At 13.1-4; 2Tm 4.5), mas também pelos leigos, como tantas pessoas salvas por Cristo fizeram, como, por exemplo, o geraseno curado pelo Senhor (Mc 5.19,20).
II. Níveis distintos de atuação missionária
É preciso reconhecer que há mais formas e gradações de envolvimento do que os dois níveis de atuação missionária mais comuns com os quais estamos acostumados, a saber: o testemunho informal de cada cristão e o anúncio feito por um ministro ordenado que se dedica exclusivamente a esse ministério.
Os níveis distintos de atuação missionária envolvem três fatores: a oficialidade, a manutenção e a vocação.
A. Oficialidade
Esse fator está relacionado à autorização institucional que a igreja dá a um membro para que desenvolva o ministério da Palavra e dos sacramentos como um oficial devidamente ordenado para esse serviço. Tal ordenação não capacita espiritualmente o obreiro, o qual já deveria anteriormente ter demonstrado possuir os dons espirituais compatíveis com a função exercida.
A imposição de mãos não oferece apenas um respaldo de confiança para que ministrem a Palavra de Deus, mas confere aos ordenados a autorização institucional para assumirem a direção da igreja, sendo responsáveis pelo pastoreio do rebanho e pela ministração dos sacramentos (Ef 4.11).
Logo, a atuação missionária pode ser desenvolvida por quem foi ordenado ao ministério da Palavra e também por quem não foi; a diferença estará no tratamento que a denominação dá a cada obreiro (reconhecimento, liberdade, responsabilidade, autorização, etc.), e na sua atuação, se formal e institucional, ou não.
B. Manutenção
Relaciona-se a três aspectos: a condição real que o campo mantenedor do trabalho missionário tem de sustentar o obreiro; a disponibilidade de dedicação que o obreiro tem para a atividade missionária; e a conveniência de se contar com fontes alternativas de renda e manutenção. Biblicamente, o ideal é que se conte com ministros ordenados que sejam mantidos pela igreja, inclusive para o trabalho missionário, o que possibilita a sua dedicação integral à obra religiosa (ICo 9.14).
Porém, isso nem sempre é possível. Para responder à questão da manutenção ou auxílio ao obreiro ordenado, devemos fazer algumas perguntas na seguinte sequência:
1) A igreja tem condições de, sozinha ou associada a outras, sustentar integralmente o seu missionário? Se a resposta for "sim", deve-se priorizar a manutenção do obreiro frente a outros desafios para que ele mantenha dignamente a sua família (ICo 9.4-6).
2) O obreiro tem as qualificações necessárias para o trabalho no campo ministerial? Se a resposta for favorável, que se dedique exclusivamente a esse serviço (ITm 5.17), o que certamente trará maiores resultados ao reino de Deus.
3) É adequado ao campo contar com um obreiro mantido integralmente para esse serviço, ou há obstáculos que prejudicariam o testemunho cristão caso isso ocorresse? Em muitos casos, Paulo, que vivia sozinho, abriu mão do direito de ser mantido pela igreja para evitar falatórios desonrosos acerca de seu ministério (2Ts 3.8,9).
Quanto ao obreiro não ordenado, a manutenção depende basicamente de dois fatores: 1) de quanto ele precisa para completar a sua renda, partindo do pressuposto de que ele já tenha uma fonte de renda; e 2) de quanto a igreja dispõe para auxiliar esse trabalho, em virtude da dedicação missionária e da necessidade real da manutenção desse obreiro em seu campo. Essas questões difíceis devem ser vistas com prudência, para que ninguém seja prejudicado.
C. Vocação
Esse fator aponta para duas questões: a primeira trata do equívoco de alguém sobre a sua vocação, o que é comum.
Por isso, deve-se conduzir alguém ao ministério só depois de a igreja local ter atestado a sua vocação ao verificar os seus dons em operação (1 Co 2.4,5; 3.5,6; At 18.24), os quais devem ser compatíveis com as funções ministeriais pretendidas (Ef 4.11; 1 Co 12.11).
Essa relação entre dom e ministério é mais séria quando se fala sobre a vocação missionária, pois, em uma medida especial, quem ensina o evangelho tem maiores responsabilidades sobre os seus ombros do que quem não o faz (Tg 3.1; Lc 17.1,2).
A segunda questão diz respeito à legitimidade de se abraçar mais de uma vocação, visto que somos dotados por Deus com variados dons e talentos naturais.
O profeta Amós não se via como um profissional da religião, mas como alguém a quem foi entregue uma mensagem a ser pregada com fidelidade (Am 7.14,15).
O apóstolo Paulo fez uso das suas habilidades profissionais inúmeras vezes como uma maneira legítima de manter-se na obra ministerial (ICo 9.14,15).
Conforme o ensino de Paulo (Ef 6.5-7), o trabalho não era apenas um meio de aliviar as despesas da igreja, mas uma verdadeira vocação dupla: missionária e artesanal.
A combinação desses três fatores nos apresenta um grande número de níveis diferenciados de atuação por parte dos obreiros cristãos:
- eles podem ser ministros ordenados pela igreja ou leigos dedicados à frente do trabalho;
- podem receber um auxílio financeiro para a sua manutenção, caso vivam a partir de outra fonte financeira, ou serem mantidos integralmente com os recursos da igreja;
- podem ser vocacionados exclusivamente para o ministério da Palavra ou glorificar a Deus também através de outro trabalho honroso.
A prudência é o que deve determinar a combinação dos níveis desses três fatores.
III. A utilidade dos fazedores de tendas
A expressão fazedor de tendas tem sido usada pelos estudiosos de missões para descrever os obreiros que atuam em um campo missionário, não apenas como testemunhas de Cristo, mas também como profissionais de outras áreas.
Assim eles obtêm parte do seu sustento pessoal ou até mesmo o sustento completo. Essa expressão surgiu a partir da prática adotada pelo apóstolo Paulo em algumas ocasiões da sua vida ministerial.
Ele teria o direito de ser mantido e de se dedicar exclusivamente ao ministério da Palavra, mas abriu mão desse recurso e bancou a sua própria manutenção através do exercício da antiga profissão de fazedor de tendas, profissão também exercida por Áquila e Priscila (At 18.1-4), leigos bastante atuantes em missões.
Paulo era primordialmente apóstolo, mas também exercia o trabalho de fazer tendas para manter-se financeiramente.
Por outro lado, Priscila e Áquila, da mesma profissão, eram primariamente fazedores de tendas, mas também obreiros leigos que, juntamente com Paulo (Rm 16.3), se dedicavam à plantação de novas igrejas, chegando uma delas a se reunir na própria residência do casal (ICo 16.19). Esses dois exemplos indicam os dois caminhos clássicos através dos quais o fazedor de tendas pode andar.
O primeiro foi percorrido por Paulo, o de alguém que se qualifica teologicamente e segue no campo como um oficial missionário ordenado ao sagrado ministério e que também desenvolve outra vocação que lhe facilite o testemunho cristão.
O segundo caminho, percorrido pelo casal citado, é o de alguém que, qualificado tecnicamente em alguma área, segue ao campo como profissional, passando a atuar também como missionário, divulgando o evangelho, ainda que através de um trabalho leigo e informal.
No nosso mundo contemporâneo há muitos lugares e países que ainda permanecem fechados ao trabalho missionário. Eles são carentes de certas habilidades técnicas e têm recrutado profissionais qualificados nas mais diversas áreas para suprir as suas necessidades.
Nessas circunstâncias, o missionário fazedor de tendas tem o perfil ideal, pois, além de ter a sua entrada legalmente permitida e até requerida, ele não precisará fazer nenhuma "ginástica" para tentar esconder tanto a razão da sua permanência no país estrangeiro, como a fonte dos recursos que o mantém. De outra maneira, não teria uma fonte de renda declarada para justificar o seu padrão de vida.
Esse missionário ainda tem o privilégio de sentir-se à vontade com a sua consciência e vocação, pois não usou o serviço apenas como pretexto, mas também estará desempenhando uma verdadeira vocação por meio da sua profissão, a qual será a ponte de contato natural para se fazer amizades e, através delas, levar o evangelho ao povo que o acolheu.
O potencial do trabalho do fazedor de tendas é grande, não apenas no exterior, mas também já tem sido muito bem explorado nas igrejas locais. São presbíteros, diáconos, evangelistas ou membros dedicados da igreja, que doam parte significativa do seu tempo para a divulgação do evangelho e até a plantação de novas igrejas.
A capacitação teológica desses obreiros tanto pode ser formal, em uma escola confessional, quanto sob o formato de tutoria, sob a orientação de alguém já qualificado.
Como são úteis esses profissionais que se dedicam ao reino de Deus! Como são necessários! Como são poucos... Será que o Senhor Jesus não se referiu a eles quando disse que os trabalhadores da seara são poucos e que devemos rogar ao Senhor da seara para que ele envie mais trabalhadores para a mesma (Mt 9.37,38)?
Até que Cristo volte, os campos continuarão brancos e os ceifeiros poucos, pois tanto os campos referidos por Cristo não são apenas as igrejas locais já estabelecidas, quanto os trabalhadores não são apenas os ministros ordenados e enviados como Paulo, mas também os profissionais, colaboradores leigos, como Áquila e Priscila (Rm 16.3-5).
Onde eles estão em nossas igrejas? Precisamos de pessoas dispostas a abrir os seus lares para abrigar uma igreja nascente, tomando parte ativa no anúncio do evangelho, enquanto desenvolvem a sua vocação honrosa por meio do seu digno exercício profissional.
Conclusão
Considerando que não apenas as pessoas ordenadas ao ministério da Palavra podem e devem ser testemunhas de Cristo e da sua obra, concluímos que todos os cristãos são vocacionados para missões.
Nem todos farão um curso teológico, nem todos serão ordenados, nem todos serão enviados a outros países, nem todos serão pregadores, mas todos devem se envolver e colaborar com o trabalho de divulgação do evangelho.
Muitos têm condições de serem colaboradores mais atuantes, chegando inclusive, a ser dirigentes de trabalhos iniciais. Podem não ser ministros fazedores de tendas, mas podem ser fazedores de tendas missionários.
Aplicação
Abrace a dupla vocação de Deus para a sua vida, tanto a profissional, quanto a cristã. Empenhe-se por testemunhar do evangelho de Cristo dentro do seu círculo de amizades e contatos pessoais. Como você pode colaborar para a expansão do reino de Deus sobre a face da terra?
Discuta com as pessoas próximas a você sobre como podem ser verdadeiros cooperadores da expansão do reino de Deus, através da divulgação do evangelho e da plantação de novas igrejas. Lembre-se: você também é um missionário.
Autor: Raimundo M. Montenegro Neto