Um dos maiores desafios da jornada cristã é a lacuna que muitas vezes sentimos entre aquilo em que acreditamos e a forma como vivemos.
Sabemos que fomos salvos pela graça, que somos filhos de Deus, mas, ao olharmos para o espelho da nossa vida diária, vemos impaciência, egoísmo, preguiça e uma infinidade de outras falhas.
Essa luta pode ser desanimadora. Sentimos a lentidão do nosso progresso e a preguiça do nosso coração, e nos perguntamos: "Como posso mudar de verdade? Como posso construir uma vida que realmente honre o Deus que me salvou?".
É como saber o destino de uma viagem, mas não ter um mapa claro de como chegar lá.
No último estudo bíblico, mergulhamos na natureza da fé, do arrependimento e do perdão. Vimos que o objetivo da regeneração não é apenas nos dar um bilhete para o céu, mas restaurar em nós a imagem de Deus. O alvo é que nossa vida entre em harmonia com a justiça de Deus, confirmando, assim, a nossa adoção como Seus filhos.
A partir de agora, vamos explorar o que a Escritura ensina sobre como essa nova vida deve ser vivida. Nosso objetivo não é criar um manual exaustivo de todas as virtudes, mas extrair da Palavra de Deus uma regra geral, um mapa claro que possa orientar todas as nossas ações.
A pergunta que nos guiará é: quais são as verdadeiras motivações bíblicas que nos impulsionam a viver uma vida santa e como podemos trilhar esse caminho de forma prática e constante?
1. A santidade de Deus é o nosso maior chamado e motivação
Muitas vezes, quando pensamos em viver a vida cristã, nosso primeiro impulso é focar em uma lista de regras e deveres. Embora a obediência seja crucial, a Bíblia nos oferece uma motivação muito mais profunda e poderosa, que serve como o ponto de partida para todas as outras: o próprio caráter de Deus.
Os filósofos da antiguidade, em sua busca pela virtude, chegavam à conclusão de que o ideal era "viver de acordo com a natureza".
A Escritura, no entanto, nos eleva a uma fonte infinitamente superior. Ela nos chama a ordenar nossa vida com base em nosso Criador. A principal razão para buscarmos a santidade não está em nós, mas Nele.
O argumento mais poderoso e repetido nas Escrituras é este: devemos ser santos porque o nosso Deus é santo. Lemos em Levítico:
Levítico 19.2
Santos sereis, porque eu, o SENHOR, vosso Deus, sou santo.
O apóstolo Pedro repete essa exortação, mostrando que ela é o alicerce da vida cristã (1 Pedro 1.16). Quando entendemos que fomos unidos a um Deus santo, percebemos que a santidade não é uma opção, mas o laço que nos une a Ele.
Sua própria glória exige que Ele não tenha familiaridade com a iniquidade e a impureza. Portanto, para termos comunhão com Ele, devemos nos assemelhar a Ele.
A Bíblia usa imagens poderosas para ilustrar isso. Somos o Seu santuário, e não convém que um lugar onde Deus habita esteja cheio de imundície como um estábulo.
Fomos chamados para habitar em Sua cidade santa, Jerusalém, e não podemos profaná-la com a nossa corrupção. O chamado para a santidade é um chamado para refletir o caráter do Deus a quem pertencemos.
Aplicação
- Mude sua motivação principal. Em vez de se perguntar apenas "O que eu devo fazer?", comece perguntando: "O que reflete o caráter do Deus a quem eu sirvo?". Deixe que o amor pela justiça e a beleza da santidade de Deus inspirem suas escolhas.
- Pratique a "ética da gratidão". Lembre-se de que Deus nos busca primeiro, antes mesmo de sermos santos, para então derramar Sua santidade sobre nós. Nossas ações não são tentativas de ganhar Seu favor, mas respostas gratas por já termos sido unidos a Ele.
- Pense na santidade como comunhão. Veja o pecado não apenas como a quebra de uma regra, mas como algo que atrapalha sua intimidade com um Deus santo. O desejo de remover o pecado de sua vida se tornará, então, um desejo de se aproximar mais Dele.
2. Nossa união com Cristo redefine quem somos e como vivemos
Além da motivação fundamental da santidade de Deus, a Escritura nos dá um segundo conjunto de razões poderosas para uma vida transformada, todas elas centradas em nossa união com Jesus Cristo. Deus não apenas nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo, mas também nos deu Cristo como um modelo ao qual devemos nos conformar (Romanos 6.4-6).
Se a nossa adoção como filhos de Deus se fundamenta em Cristo, nossa vida deve refletir essa nova realidade. Negligenciar a justiça e a santidade não é apenas uma deslealdade ao nosso Criador, mas também uma negação do nosso Salvador. A Bíblia extrai exortações práticas de cada aspecto da nossa salvação:
- Somos filhos, portanto, devemos imitar nosso Pai. Já que Deus nos deu a honra de sermos Seus filhos, agimos como ingratos se não refletirmos Seu caráter em nossa vida (Malaquias 1.6; 1 João 3.1).
- Fomos purificados pelo sangue de Cristo, portanto, não devemos nos sujar novamente. Tendo sido lavados por um preço tão alto, seria um absurdo voltarmos a nos manchar deliberadamente com a impureza do pecado (Efésios 5.26; Hebreus 10.10).
- Fomos enxertados no corpo de Cristo, portanto, devemos zelar por essa união. Como membros de Cristo, devemos ter o máximo cuidado para não nos contaminarmos, pois o que afeta o membro, desonra a Cabeça (1 Coríntios 6.15; Efésios 5.23).
- Nossa Cabeça subiu aos céus, portanto, nosso coração deve estar lá. Se Cristo, nossa Cabeça, está nos céus, devemos nos despojar dos afetos terrenos e focar nas coisas do alto (Colossenses 3.1-2).
- Somos templos do Espírito Santo, portanto, devemos glorificar a Deus. Se o Espírito nos consagrou como templos, devemos nos esforçar para que a glória de Deus seja exaltada através de nós, e não profanada (1 Coríntios 6.19).
- Nossa alma e nosso corpo são destinados à glória, portanto, devemos mantê-los puros. Sabendo que nosso destino é a incorrupção e uma coroa de glória, devemos lutar para nos conservar puros e sem mancha até o dia do Senhor (1 Tessalonicenses 5.23).
Aplicação
- Comece seu dia meditando em sua identidade. Antes de pensar em sua lista de tarefas, lembre-se de quem você é: um filho de Deus, um membro de Cristo, um templo do Espírito. Deixe que essa verdade defina o tom do seu dia.
- Use sua identidade como um filtro para suas decisões. Diante de uma tentação ou de uma escolha difícil, pergunte: "Isso é condizente com alguém que foi unido a Cristo? Isso honra o templo onde o Espírito de Deus habita?".
- Pense na interconexão do Corpo. Lembre-se de que sua santidade (ou falta dela) afeta não apenas você, mas todo o Corpo de Cristo. Isso traz um novo senso de responsabilidade e encorajamento mútuo.
3. O evangelho não é uma doutrina a ser aprendida, mas uma vida a ser vivida
É crucial nos dirigirmos àqueles que se contentam com um cristianismo superficial. São muitos os que se orgulham do nome de "cristão", mas cuja vida não demonstra nenhum conhecimento real de Cristo. Falam do Evangelho, discutem doutrinas, mas vivem de maneira indistinguível do mundo.
Isso é uma grande injúria a Cristo. O apóstolo Paulo nos ensina que ninguém conheceu verdadeiramente a Cristo se não aprendeu com Ele a se despojar do velho homem e a se revestir do novo homem (Efésios 4.20-24).
O Evangelho não é uma filosofia para ser debatida, mas uma vida para ser vivida. Não se aprende apenas com o intelecto e a memória, como outras ciências, mas deve possuir a alma e se assentar no mais profundo do coração.
A fé que não transforma a vida é, na melhor das hipóteses, uma imitação vazia. Se os filósofos se irritam com aqueles que transformam a filosofia, a "mestra da vida", em mera conversa de sofistas, com quanta maior razão devemos abominar os que reduzem o Evangelho a um mero discurso, algo para se ter nos lábios, mas não no coração.
A eficácia do Evangelho deve penetrar os afetos mais íntimos da alma, transformando radicalmente o homem de dentro para fora, de uma maneira que as frias exortações dos filósofos jamais conseguiriam.
Aplicação
- Faça uma autoavaliação honesta. Sua fé tem produzido mudanças reais em seu caráter e em suas ações? Onde o Evangelho que você professa ainda não se tornou uma realidade em sua vida?
- Peça a Deus para que a verdade desça da sua mente para o seu coração. Não se contente em apenas "saber" a doutrina correta. Ore para que o Espírito Santo enraíze essa verdade em sua alma, de modo que ela produza o fruto de uma vida transformada.
- Conecte doutrina com prática. Ao estudar uma doutrina bíblica (como a soberania de Deus ou a justificação pela fé), sempre se pergunte: "Como essa verdade deve mudar a forma como eu vivo, oro, trabalho e me relaciono hoje?".
4. A perfeição é o alvo, e o progresso é o caminho
Diante de um chamado tão elevado, é fácil desanimar. Ninguém vive uma vida que seja um "perfeito Evangelho". Se a perfeição absoluta fosse a condição para ser considerado cristão, teríamos que excluir a todos da Igreja, pois não há ninguém, por mais avançado que seja, que não esteja muito longe desse alvo.
Então, o que devemos fazer? A resposta não é baixar o padrão, mas entender a dinâmica do progresso. Devemos ter sempre diante dos nossos olhos o alvo da perfeição, e nos esforçar continuamente para alcançá-lo. Não é lícito "negociar" com Deus, escolhendo obedecer em algumas áreas e ignorar outras.
Deus nos chama à integridade, uma sinceridade de coração sem engano ou ficção. Isso se opõe a um coração dividido.
O princípio de uma vida reta é aplicar todo o nosso ser a servir a Deus. Como estamos presos neste corpo, ninguém tem forças para correr com a velocidade que deveria. A maioria de nós é tão fraca que avança vacilando, mancando e se arrastando.
Contudo, o importante é que caminhemos segundo nossas possibilidades e não deixemos de prosseguir no caminho que começamos.
Ninguém avançará tão pouco que não ganhe algum terreno a cada dia. O sucesso pode não corresponder ao nosso desejo, mas o esforço não é em vão se o hoje for melhor que o ontem.
Com sinceridade e sem nos iludirmos com nossos vícios, devemos nos esforçar sem cessar para sermos cada dia melhores, até que alcancemos a perfeita bondade, o que só acontecerá quando formos plenamente admitidos na companhia de Deus.
Aplicação
- Troque a frustração pela perseverança. Não se desespere com sua falta de perfeição. Em vez disso, concentre-se no progresso contínuo. Celebre as pequenas vitórias e aprenda com as quedas, sempre se levantando e continuando a caminhar.
- Defina um alvo de crescimento. Em vez de se sentir sobrecarregado com a ideia de "ser perfeito", escolha uma área específica de sua vida e peça a Deus para ajudá-lo a crescer nela nesta semana ou neste mês.
- Lembre-se de que a jornada é comunitária. Todos nós estamos mancando em direção ao mesmo alvo. Isso deve gerar humildade, paciência e encorajamento mútuo, em vez de julgamento e competição.
Conclusão
A vida cristã não é um estado estático, mas uma jornada dinâmica. Não é uma lista de regras a serem cumpridas por medo, mas uma resposta de amor ao caráter santo de nosso Deus.
Ela não é baseada em nossa própria força, mas flui de nossa identidade em Cristo, que redefine tudo sobre nós.
Não é um mero conhecimento intelectual, mas uma verdade que transforma o coração e a vida. E, finalmente, não é uma busca por perfeição instantânea, mas um caminho de progresso constante e perseverante.
Que possamos abraçar essa jornada com coragem e sinceridade. Olhemos para o alvo elevado que Deus nos propõe, não com desespero, mas com esperança, sabendo que Aquele que começou a boa obra em nós é fiel para completá-la.
Que cada dia nos encontre um passo mais perto, por mais pequeno que seja, de refletir a imagem Daquele que nos amou e se entregou por nós.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro III - Capítulo VI - "Sobre a vida do cristão. Argumentos da Escritura que nos exortam a ela"
Lista de estudos da série
1. A Conexão Secreta: Como a obra do Espírito Santo nos une a Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. O Conhecimento Que Salva: A fé como certeza, não como um salto no escuro – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. O Fruto da Fé: O que é o verdadeiro arrependimento que transforma a vida – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Labirinto da Culpa: A liberdade do perdão em contraste com rituais humanos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. A Afronta à Cruz: Por que a obra de Cristo não precisa de suplementos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. O Mapa da Santidade: Como viver uma vida que realmente honra a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. O Paradoxo da Vida: Por que negar a si mesmo é o caminho para a liberdade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. A Bênção Disfarçada: O propósito divino de carregar a nossa cruz – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Bússola da Alma: Vivendo nesta vida com os olhos fixos na eternidade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. A Alegria Equilibrada: Como usar os dons de Deus com gratidão e moderação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. O Veredito da Graça: O que significa ser justificado somente pela fé – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Diante do Trono: A única perspectiva que revela nossa necessidade da graça – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Os Dois Pilares da Fé: Como a justificação glorifica a Deus e pacifica a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. A Obra da Graça: O valor das boas obras na vida do crente justificado – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Jogo do Mérito: Desconstruindo a confiança nas obras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. A Graça que Santifica: Por que a justificação gratuita produz uma vida santa – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. A Harmonia da Graça: Como as promessas da Lei se cumprem no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas
18. O Presente da Recompensa: Entendendo a motivação por trás das boas obras – Estudo Bíblico sobre as Institutas
19. O Antídoto Duplo: Como a liberdade cristã nos protege do legalismo e da licença – Estudo Bíblico sobre as Institutas
20. A Chave do Tesouro: Descobrindo o poder e o propósito da oração – Estudo Bíblico sobre as Institutas
21. O Mistério da Escolha: A doutrina da eleição como fonte de humildade e segurança – Estudo Bíblico sobre as Institutas
22. A Soberania que Salva: Como a escolha de Deus se revela na história bíblica – Estudo Bíblico sobre as Institutas
23. A Graça que Incomoda: Respondendo às objeções sobre a eleição e a reprovação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
24. O Selo da Salvação: Como o chamado de Deus confirma Sua escolha eterna – Estudo Bíblico sobre as Institutas
25. A Esperança que Sustenta: Meditando na ressurreição final para viver hoje – Estudo Bíblico sobre as Institutas
