É um tesouro de valor inestimável, mas, como uma espada afiada, pode causar grandes estragos se usada de forma imprudente.
Sem um conhecimento claro da liberdade cristã, nossa consciência dificilmente se atreve a empreender qualquer coisa sem duvidar.
Vivemos em um estado constante de vacilação e medo, presos a uma infinidade de regras e escrúpulos, questionando se estamos agradando a Deus. A vida cristã se torna um fardo pesado, em vez de uma jornada de alegria.
Por outro lado, assim que a liberdade é mencionada, muitos a usam como pretexto para dar rédea solta aos seus apetites, mergulhando em uma vida de excessos e desconsideração pelos outros.
Eles transformam a liberdade em libertinagem, causando escândalo e desonrando o nome de Cristo. Outros, vendo esse abuso, se indignam e rejeitam a própria ideia de liberdade, acreditando que ela destrói toda a ordem e moderação.
O que fazer, então, quando nos vemos cercados por esses dois perigos: o legalismo que aprisiona e a licença que corrompe? Devemos simplesmente ignorar essa doutrina para evitar problemas? A Escritura nos diz que não.
Sem o conhecimento da liberdade cristã, não podemos conhecer verdadeiramente a Cristo, a verdade do Evangelho ou a paz de alma. Portanto, é nosso dever colocar toda a diligência para entender essa doutrina tão necessária e, ao mesmo tempo, refutar os abusos que a cercam.
1. Nossa consciência está livre da condenação da Lei
A liberdade cristã, em sua essência, consiste em três partes. A primeira e mais fundamental é esta: a consciência dos fiéis, ao buscar a certeza de sua justificação diante de Deus, deve se elevar acima da Lei e esquecer toda a justiça legal.
Como já vimos, a Lei de Deus, quando aplicada à nossa vida, não nos deixa outra opção a não ser a condenação. Ela exige uma perfeição que jamais alcançaremos.
Portanto, se nossa esperança de sermos justos dependesse, mesmo que minimamente, de nossas obras, seríamos excluídos dela. É necessário que sejamos libertos da Lei, de tal forma que nossa justificação não tenha nenhuma relação com nossas obras.
Diante do tribunal de Deus, quando a questão é "Como sou aceito por Ele?", a Lei não tem mais jurisdição sobre nossa consciência.
Devemos abraçar unicamente a misericórdia de Deus, desviar nossos olhos de nós mesmos e fixá-los somente em Jesus Cristo. Ele é nossa única justiça, uma justiça que excede em muito toda a perfeição da Lei.
Isso significa que a Lei é inútil para o crente? De modo algum. A Lei continua a nos ensinar, exortar e nos incitar ao bem. Ela nos mostra o padrão de santidade de Deus e nos guia em nossa caminhada. No entanto, quando se trata de nossa posição diante de Deus, da paz da nossa consciência, a Lei deve ser silenciada.
O apóstolo Paulo, na carta aos Gálatas, defende vigorosamente essa liberdade. Ele declara:
Gálatas 3.13
Cristo nos resgatou da maldição da Lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar.
Ele argumenta que aqueles que buscam a justificação pela Lei se desligaram de Cristo e caíram da graça (Gálatas 5.4). Portanto, a primeira dimensão da nossa liberdade é sermos libertos da condenação e do jugo da Lei no que diz respeito à nossa justificação.
Aplicação
- Lute contra o legalismo interior. Muitas vezes, mesmo crendo na graça, vivemos como se nossa aceitação dependesse de nosso desempenho. Quando você pecar, lembre-se de que a Lei não tem mais o poder de condená-lo. Corra para Cristo, não para um ciclo de autopunição.
- Distinga entre o papel da Lei como Guia e como Juiz. Agradeça a Deus pela Lei como um mapa que o guia na santidade, mas recuse-se a permitir que ela suba ao banco do juiz em sua consciência. Esse lugar pertence somente a Cristo.
- Descanse na justiça de Outro. A paz da consciência não é encontrada em um autoexame que conclui "eu fui bom hoje", mas em olhar para Cristo e dizer: "Ele foi perfeito por mim".
2. Fomos libertos para obedecer por amor, não por medo
A segunda parte da liberdade cristã, que depende diretamente da primeira, é esta: nossas consciências obedecem à Lei não como se fossem forçadas pela necessidade dela, mas, livres do jugo da Lei, elas se submetem voluntariamente à vontade de Deus.
Enquanto estamos sob o domínio da Lei, vivemos em um estado de perpétua ansiedade e medo. Sentimo-nos como servos diante de um senhor exigente, a quem são impostas tarefas diárias. Esses servos nunca ousam se apresentar diante de seu senhor sem ter completado perfeitamente sua tarefa. Eles vivem sob o medo constante da punição.
Os filhos, por outro lado, são tratados de forma mais branda e liberal por seus pais. Eles não hesitam em apresentar suas obras imperfeitas e inacabadas, confiantes de que sua obediência e seu desejo de agradar serão bem recebidos, mesmo que não tenham alcançado a perfeição. Assim devemos ser nós.
Devemos nos convencer de que nossos serviços, ainda que imperfeitos, são agradáveis ao nosso Pai misericordioso. O profeta Malaquias nos dá essa confirmação:
Malaquias 3.17
...e eu os pouparei como um homem poupa a seu filho que o serve.
Deus nos trata não como servos a serem julgados com rigor, mas como filhos cujas faltas são cobertas com benignidade. Essa confiança é absolutamente necessária, pois, sem ela, toda tentativa de obedecer seria em vão. Como poderíamos nos dedicar a uma obra se sempre duvidássemos se ela agrada ou ofende a Deus?
Essa é a liberdade que Paulo descreve em Romanos: "o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e sim da graça" (Romanos 6.14). A libertação do rigor da Lei não nos leva a pecar, mas nos anima e nos induz a fazer o bem com um coração alegre e livre.
Aplicação
- Sirva a Deus com a alegria de um filho, não com o medo de um escravo. Sua obediência deve fluir da gratidão e do amor, não do medo da punição. Isso transforma o dever em deleite.
- Ofereça a Deus sua obediência imperfeita. Não espere ser perfeito para servir a Deus. Ofereça a Ele seus esforços sinceros, mas imperfeitos, confiando que Ele os recebe com um sorriso paternal por causa de Cristo.
- Lute contra o desânimo. Quando você falhar, não se afunde na desesperança de um servo que falhou. Levante-se com a confiança de um filho que sabe que tem um Pai gracioso, pronto a perdoar e a restaurar.
3. Temos liberdade de consciência sobre as coisas indiferentes
A terceira parte da nossa liberdade é esta: não somos obrigados diante de Deus por nenhuma preocupação com as coisas externas que são, em si mesmas, indiferentes; podemos usá-las ou nos abster delas indiferentemente.
Muitos consideram esta uma questão trivial, mas ela é de suma importância. Quando as consciências se enredam em superstições e regras humanas sobre coisas como comida, bebida, vestimentas e dias de festa, elas entram em um longo labirinto de onde não é fácil sair.
Se você começa a duvidar se é lícito usar linho, logo duvidará do algodão e, por fim, terá escrúpulo até de pisar em uma palha.
A dúvida reside em se Deus quer ou não que usemos certas coisas. Nossa liberdade nos ensina que, em questões não ordenadas nem proibidas por Deus, nossa consciência não está sujeita a regras humanas. Como diz Paulo:
Romanos 14.14
Eu sei e estou persuadido, no Senhor Jesus, de que nenhuma coisa é de si mesma imunda, a não ser para aquele que a considera imunda; para esse é imunda.
Isso coloca todas as coisas externas sob nossa liberdade, contanto que nossa consciência permaneça segura diante de Deus dessa liberdade. No entanto, essa liberdade deve ser sempre moderada por duas regras: o amor ao próximo e a pureza da fé. Não devemos usar nossa liberdade de forma imprudente, a ponto de escandalizar um irmão mais fraco. Nossa liberdade não nos foi dada para ferir nosso próximo, mas para edificá-lo em amor.
Aplicação
- Liberte-se de regras não bíblicas. Examine sua vida em busca de "leis" que você ou outros impuseram, mas que não têm fundamento na Escritura. Deus o libertou dessas obrigações autoimpostas.
- Use sua liberdade com amor. Sua liberdade para fazer algo (comer certo alimento, ouvir certo tipo de música, etc.) termina onde começa o dano espiritual ao seu irmão. A caridade deve sempre governar o uso da nossa liberdade.
- Distinga entre os "fracos" e os "fariseus". Devemos ceder nossa liberdade por amor aos irmãos de consciência fraca. No entanto, não devemos ceder ao rigor dos legalistas (fariseus) que tentam impor suas regras como lei divina, pois isso destruiria a própria liberdade cristã.
Conclusão
A liberdade cristã é a essência da experiência evangélica. É um apêndice indispensável da justificação, que nos mostra seu verdadeiro poder.
Ela nos liberta, em primeiro lugar, da tirania da Lei, para que nossa consciência possa encontrar paz e segurança diante de Deus, não com base em nossas obras, mas na justiça de Cristo.
Em segundo lugar, ela nos liberta da compulsão da Lei, para que possamos obedecer à vontade de Deus não como escravos medrosos, mas como filhos alegres e voluntários.
E, em terceiro lugar, ela nos liberta das regras e superstições humanas sobre coisas externas, para que possamos usar os bons dons de Deus com um coração puro e uma consciência tranquila.
Que possamos, portanto, zelar por esta doutrina tão preciosa. Que não permitamos que ela seja suprimida pelo medo ou abusada pela licenciosidade.
Que vivamos como homens e mulheres verdadeiramente livres: livres da condenação do pecado, livres para uma vida de santidade alegre e livres para desfrutar da criação de Deus, tudo para a glória de nosso grande Libertador, Jesus Cristo.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro III - Capítulo XIX - "A liberdade cristã"
Lista de estudos da série
1. A Conexão Secreta: Como a obra do Espírito Santo nos une a Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. O Conhecimento Que Salva: A fé como certeza, não como um salto no escuro – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. O Fruto da Fé: O que é o verdadeiro arrependimento que transforma a vida – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Labirinto da Culpa: A liberdade do perdão em contraste com rituais humanos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. A Afronta à Cruz: Por que a obra de Cristo não precisa de suplementos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. O Mapa da Santidade: Como viver uma vida que realmente honra a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. O Paradoxo da Vida: Por que negar a si mesmo é o caminho para a liberdade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. A Bênção Disfarçada: O propósito divino de carregar a nossa cruz – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Bússola da Alma: Vivendo nesta vida com os olhos fixos na eternidade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. A Alegria Equilibrada: Como usar os dons de Deus com gratidão e moderação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. O Veredito da Graça: O que significa ser justificado somente pela fé – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Diante do Trono: A única perspectiva que revela nossa necessidade da graça – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Os Dois Pilares da Fé: Como a justificação glorifica a Deus e pacifica a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. A Obra da Graça: O valor das boas obras na vida do crente justificado – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Jogo do Mérito: Desconstruindo a confiança nas obras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. A Graça que Santifica: Por que a justificação gratuita produz uma vida santa – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. A Harmonia da Graça: Como as promessas da Lei se cumprem no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas
18. O Presente da Recompensa: Entendendo a motivação por trás das boas obras – Estudo Bíblico sobre as Institutas
19. O Antídoto Duplo: Como a liberdade cristã nos protege do legalismo e da licença – Estudo Bíblico sobre as Institutas
20. A Chave do Tesouro: Descobrindo o poder e o propósito da oração – Estudo Bíblico sobre as Institutas
21. O Mistério da Escolha: A doutrina da eleição como fonte de humildade e segurança – Estudo Bíblico sobre as Institutas
22. A Soberania que Salva: Como a escolha de Deus se revela na história bíblica – Estudo Bíblico sobre as Institutas
23. A Graça que Incomoda: Respondendo às objeções sobre a eleição e a reprovação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
24. O Selo da Salvação: Como o chamado de Deus confirma Sua escolha eterna – Estudo Bíblico sobre as Institutas
25. A Esperança que Sustenta: Meditando na ressurreição final para viver hoje – Estudo Bíblico sobre as Institutas
