A Alegria Equilibrada: Como usar os dons de Deus com gratidão e moderação – Estudo Bíblico sobre as Institutas

Como um cristão deve viver no mundo? Essa pergunta nos coloca diante de dois abismos perigosos. 

De um lado, há o abismo de um legalismo austero e sem alegria, que olha com desconfiança para qualquer forma de prazer e nos ensina que o uso dos bens deste mundo deve se limitar ao estritamente necessário. 

Do outro lado, há o abismo de uma liberdade licenciosa, que usa a graça como pretexto para a autoindulgência e se afunda no consumismo e na busca desenfreada pelo prazer.

Navegar entre esses dois extremos é um dos maiores desafios da vida cristã. Se caímos no primeiro, nos tornamos rígidos, julgadores e privamos a nós mesmos do fruto lícito da liberalidade divina. 

Se caímos no segundo, permitimos que a carne se desborde, nos tornamos escravos de nossos apetites e transformamos os dons de Deus em obstáculos para nossa jornada espiritual.

No estudo bíblico anterior, aprendemos a meditar na vida futura, menosprezando a presente. Mas isso não significa que devemos odiar a vida que Deus nos deu. Pelo contrário, a Escritura nos oferece uma lição equilibrada sobre o uso correto dos bens temporais. 

Se temos que viver, é necessário que usemos os meios para viver. A pergunta crucial é: qual é a medida correta para usarmos os dons de Deus, seja por necessidade ou por prazer, com uma consciência pura e sã?

O Senhor nos ensina que esta vida é uma peregrinação em direção ao Reino dos céus. Portanto, os bens desta terra devem ser usados na medida em que nos ajudam a avançar em nossa jornada, e não como obstáculos que nos prendem. 

Vamos explorar as regras simples e profundas que a Palavra de Deus nos dá para vivermos neste mundo com alegria, gratidão e sabedoria.

1. Os dons de Deus foram criados para nossa necessidade e nosso deleite

O ponto de partida para um uso correto dos bens terrenos é entender o propósito para o qual Deus os criou. Aquele que se atém com diligência ao fim estabelecido pelo Criador é o que caminha mais retamente. 

Uma filosofia desumana nos diria que só podemos usar as criaturas de Deus para o estritamente necessário, reduzindo o homem a um pedaço de madeira sem sentidos.

No entanto, ao olharmos para a criação, vemos um Deus que não é apenas funcional, mas generoso e artístico. Ele não proveu apenas o nosso sustento, mas também o nosso prazer e satisfação.

Nos alimentos, Ele não considerou apenas a necessidade, mas também o sabor. Nas vestes, não pensou apenas em nos cobrir, mas também no decoro e na honestidade.

Nas ervas, árvores e frutos, além da utilidade prática, Ele quis alegrar nossos olhos com sua beleza e nossos sentidos com seus aromas. 

Se não fosse assim, o Salmista não cantaria que Deus nos deu "o vinho que alegra o coração do homem, o azeite que faz reluzir o rosto" (Salmo 104.15). Se o prazer fosse ilegítimo, Deus não teria criado flores com uma beleza estonteante e perfumes cativantes, mesmo sem uma "necessidade" prática.

Deus diferenciou as cores para que algumas nos agradassem mais que outras. Ele deu ao ouro, à prata e ao mármore uma graça particular que os torna mais preciosos que outros metais. 

Em resumo, Ele nos deu inúmeras coisas que devemos ter em grande estima, sem que sejam estritamente necessárias para a sobrevivência. Rejeitar essa dimensão da criação é desprezar a liberalidade do Criador.

Aplicação

  • Desfrute dos dons de Deus sem culpa. Saboreie uma boa refeição, aprecie uma obra de arte, vista uma roupa bonita, deleite-se com um perfume agradável. Fazer isso não é pecado; é uma forma de honrar a generosidade do Criador.
  • Veja o caráter de Deus na beleza do mundo. Ao contemplar uma paisagem, uma flor ou uma canção, pergunte-se: "O que isso me revela sobre o meu Deus?". A beleza, a ordem e a criatividade no mundo são reflexos do caráter do Artista Divino.
  • Combata o falso dualismo espiritual. A ideia de que as coisas "espirituais" são boas e as coisas "materiais" são ruins não é cristã. Nosso Deus é o Criador de ambos, e Ele nos chama a glorificá-lo através do uso correto de Seus dons materiais.

2. A gratidão a Deus e o desapego do mundo regulam nosso coração

Saber que Deus criou as coisas para nosso deleite não é um passe livre para a autoindulgência. A Escritura nos dá duas grandes regras que servem como balizas para nos manter no caminho certo: uma olhando para cima, para Deus, e a outra olhando para frente, para a eternidade.

A primeira regra é esta: devemos usar todos os dons de Deus de tal forma que possamos reconhecê-lo como autor e dar-lhe graças. Onde estará a gratidão se você come ou bebe a ponto de se entorpecer e se tornar inútil para o serviço a Deus? 

Como você pode agradecer a Deus por suas roupas se a suntuosidade delas o enche de arrogância ou se a sensualidade delas se torna um instrumento de pecado? O abuso dos dons de Deus, que nos leva a nos esquecermos Dele, é o caminho oposto da gratidão.

A segunda regra vem da meditação sobre a vida futura: devemos aprender a usar este mundo como se não o usássemos, e a possuir as coisas como se não as possuíssemos. Paulo nos ensina que "os que se alegram, como se não se alegrassem; e os que compram, como se não possuíssem; e os que usam deste mundo, como se dele não abusassem" (1 Coríntios 7.30-31).

Quem vive com essa mentalidade de peregrino corta pela raiz a intemperança, a ambição, a soberba e a cobiça. 

Aprende a suportar a pobreza com paciência e a desfrutar da abundância com moderação. O apego excessivo às coisas externas nos prende e nos impede de avançar no caminho celestial. Portanto, devemos nos guardar diligentemente para não transformar em obstáculos as coisas que Deus nos deu para serem ajudas.

Aplicação

  • Pratique a "pausa da gratidão". Antes de cada refeição, antes de usar um bem que você comprou, antes de desfrutar de um momento de lazer, pare por um instante e ofereça a Deus uma gratidão específica e consciente. Isso treina o coração a ver o Doador em cada dom.
  • Faça a "pergunta do peregrino". Ao tomar decisões sobre seu estilo de vida, compras ou entretenimento, pergunte-se: "Isso está me ajudando a avançar em minha jornada para o céu, ou está se tornando um peso que me prende a este mundo?".
  • Aprenda o contentamento tanto na falta quanto na abundância. Se você tem pouco, aprenda a suportar a pobreza sem ser consumido pela inveja. Se você tem muito, aprenda a usar com moderação, sem ser dominado pela arrogância. Ambos são exercícios essenciais na escola de Cristo.

3. Somos mordomos fiéis que vivem segundo a nossa vocação

A Escritura nos apresenta mais duas regras que trazem ordem e propósito ao nosso uso dos bens terrenos: o princípio da mordomia e o princípio da vocação.

A terceira regra é: devemos lembrar que somos administradores dos bens que Deus nos confiou. Todas as coisas nos são dadas pela benignidade de Deus e constituem um depósito do qual um dia teremos de prestar contas. Devemos administrá-las como se estivéssemos ouvindo continuamente a voz do Senhor: "Dá contas da tua mordomia" (Lucas 16.2).

Quem é Aquele a quem prestaremos contas? É Aquele que nos ordenou a abstinência, a sobriedade e a modéstia. É Aquele que detesta o excesso, a ostentação e a vaidade. É Aquele que não aprova nenhuma outra forma de administrar nossos bens que não seja regulada pela caridade. Lembre-se, somos mordomos, não donos.

A quarta e última regra é: devemos considerar nossa vocação em todas as nossas ações. Deus, para evitar que giremos sem rumo pela vida, ordenou a cada um um modo de viver. Ele chama esses diferentes modos de vida de "vocações". Cada um deve se ater à sua maneira de viver, como se fosse um posto no qual o Senhor o colocou.

Quem entende que sua vocação é o princípio que deve governá-lo em todas as coisas jamais tentará ir além de seus limites. 

A pessoa de condição humilde se contentará com sua situação, pois sabe que foi o lugar que Deus lhe designou. Isso traz um consolo maravilhoso: não há obra tão humilde e baixa que não resplandeça diante de Deus e não seja preciosa a Seus olhos, contanto que, com ela, sirvamos à nossa vocação.

Aplicação

  • Elabore um "orçamento do Reino". Em vez de ver seu dinheiro como "seu", veja-o como recursos de Deus que você está gerenciando. Como isso muda suas prioridades de gastos, poupança e doações?
  • Encontre o propósito divino em seu trabalho atual. Seja você um executivo, um operário, um estudante, uma dona de casa ou um aposentado, essa é a vocação que Deus lhe deu para este momento. Como você pode glorificar a Deus e servir ao próximo *dentro* dessa vocação específica?
  • Liberte-se da ambição inquieta. A doutrina da vocação nos livra da pressão de ter que estar sempre buscando o próximo cargo, o próximo projeto, a próxima conquista. Ela nos ensina a encontrar contentamento e a florescer onde Deus nos plantou.

Conclusão

A vida cristã não é uma fuga do mundo, mas um engajamento transformado com ele. Não somos chamados a uma austeridade que nega a bondade da criação, nem a uma indulgência que nos torna escravos dela. Somos chamados a um caminho de alegria e moderação.

Esse caminho é pavimentado com quatro princípios claros: primeiro, reconhecer que Deus criou os bens deste mundo não só para nossa necessidade, mas também para nosso deleite. 

Segundo, regular nosso uso pela gratidão a Deus e pelo desapego deste mundo. Terceiro, lembrar que somos mordomos, e não donos, de tudo o que possuímos. E quarto, viver fielmente dentro da vocação específica que Deus nos deu.

Ao seguir estas regras, encontramos uma liberdade que o mundo não conhece. A liberdade de desfrutar sem ser escravizado. 

A liberdade de possuir sem ser possuído. A liberdade de viver com propósito, sabendo que cada ato, por mais humilde que seja, quando feito dentro de nossa vocação para a glória de Deus, é um ato de adoração precioso e agradável a Ele.


Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro III - Capítulo X - "Como devemos usar a vida presente e seus recursos"

Lista de estudos da série

1. A Conexão Secreta: Como a obra do Espírito Santo nos une a Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

2. O Conhecimento Que Salva: A fé como certeza, não como um salto no escuro – Estudo Bíblico sobre as Institutas

3. O Fruto da Fé: O que é o verdadeiro arrependimento que transforma a vida – Estudo Bíblico sobre as Institutas

4. O Labirinto da Culpa: A liberdade do perdão em contraste com rituais humanos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

5. A Afronta à Cruz: Por que a obra de Cristo não precisa de suplementos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

6. O Mapa da Santidade: Como viver uma vida que realmente honra a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas

7. O Paradoxo da Vida: Por que negar a si mesmo é o caminho para a liberdade – Estudo Bíblico sobre as Institutas

8. A Bênção Disfarçada: O propósito divino de carregar a nossa cruz – Estudo Bíblico sobre as Institutas

9. A Bússola da Alma: Vivendo nesta vida com os olhos fixos na eternidade – Estudo Bíblico sobre as Institutas

10. A Alegria Equilibrada: Como usar os dons de Deus com gratidão e moderação – Estudo Bíblico sobre as Institutas

11. O Veredito da Graça: O que significa ser justificado somente pela fé – Estudo Bíblico sobre as Institutas

12. Diante do Trono: A única perspectiva que revela nossa necessidade da graça – Estudo Bíblico sobre as Institutas

13. Os Dois Pilares da Fé: Como a justificação glorifica a Deus e pacifica a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas

14. A Obra da Graça: O valor das boas obras na vida do crente justificado – Estudo Bíblico sobre as Institutas

15. O Jogo do Mérito: Desconstruindo a confiança nas obras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas

16. A Graça que Santifica: Por que a justificação gratuita produz uma vida santa – Estudo Bíblico sobre as Institutas

17. A Harmonia da Graça: Como as promessas da Lei se cumprem no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas

18. O Presente da Recompensa: Entendendo a motivação por trás das boas obras – Estudo Bíblico sobre as Institutas

19. O Antídoto Duplo: Como a liberdade cristã nos protege do legalismo e da licença – Estudo Bíblico sobre as Institutas

20. A Chave do Tesouro: Descobrindo o poder e o propósito da oração – Estudo Bíblico sobre as Institutas

21. O Mistério da Escolha: A doutrina da eleição como fonte de humildade e segurança – Estudo Bíblico sobre as Institutas

22. A Soberania que Salva: Como a escolha de Deus se revela na história bíblica – Estudo Bíblico sobre as Institutas

23. A Graça que Incomoda: Respondendo às objeções sobre a eleição e a reprovação – Estudo Bíblico sobre as Institutas

24. O Selo da Salvação: Como o chamado de Deus confirma Sua escolha eterna – Estudo Bíblico sobre as Institutas

25. A Esperança que Sustenta: Meditando na ressurreição final para viver hoje – Estudo Bíblico sobre as Institutas

Semeando Vida

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