O Jogo do Mérito: Desconstruindo a confiança nas obras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas

Um dos instintos mais profundos do coração humano é o desejo de "merecer". Queremos sentir que nosso esforço vale alguma coisa, que nossas boas ações nos dão algum crédito. No trabalho, buscamos o mérito para obter uma promoção. 

Nos relacionamentos, tentamos merecer o afeto e o respeito dos outros. É natural que levemos essa mesma mentalidade para nossa relação com Deus.

Quando começamos a falar sobre o valor de nossas obras, a conversa se torna muito séria. Entramos no coração da nossa salvação. 

O erro comum, no qual não apenas o povo, mas até homens doutos se perdem, é este: assim que a Bíblia elogia uma boa obra, imediatamente saltamos para a conclusão de que as obras têm algum mérito diante de Deus para nos justificar.

No estudo bíblico anterior, vimos como é impossível para qualquer ser humano, mesmo o crente mais devoto, apresentar uma justiça própria que possa subsistir diante do tribunal de Deus. 

Agora, precisamos considerar esta questão com ainda mais diligência, pois ela é o ponto central de toda a nossa segurança. A justiça se baseia em nossas obras ou na pura misericórdia de Deus?

A pergunta que nos guiará é crucial para a nossa liberdade: qual é o verdadeiro valor das nossas obras diante de Deus? 

Elas contribuem para a nossa salvação, ou são um perigoso desvio que rouba tanto a glória de Deus quanto a certeza da nossa alma? Ao entendermos isso, descobriremos por que tudo o que se diz para exaltar os méritos das obras, na verdade, destrói os dois pilares da nossa fé.

1. A palavra "mérito" é uma armadilha para a alma

A própria palavra "mérito", quando aplicada às obras humanas diante do juízo de Deus, é infeliz e perigosa. Ela inevitavelmente obscurece a graça de Deus e enche o coração humano de uma soberba sutil. Se as nossas boas obras pudessem ser descritas por outra palavra, sem causar dano, teria sido melhor.

Os antigos pais da Igreja, como Agostinho, usaram essa palavra, mas sempre com o cuidado de esvaziá-la de seu significado orgulhoso. Agostinho dizia: "Os santos não atribuem nada a seus méritos, mas atribuem tudo à tua única misericórdia, ó Deus". 

Ele entendia que qualquer bem que possuímos não vem de nós mesmos, mas do nosso Deus; portanto, tudo o que é louvável em nós vem da misericórdia Dele, não de nossos méritos.

São Bernardo de Claraval, um teólogo medieval, expressou isso de forma brilhante, dizendo que basta para merecer, saber que os méritos não são suficientes. Ele nos encoraja a procurar ter méritos, mas, ao tê-los, a entender que eles nos foram dados. 

A verdadeira esperança do crente não é o fruto de seus méritos, mas da misericórdia de Deus. Ele pergunta: "Por que a Igreja se preocuparia com seus méritos, quando tem um motivo muito mais certo e firme para se gloriar na benevolência de Deus?".

O perigo da linguagem do mérito é que ela nos treina a olhar para dentro de nós mesmos em busca de confiança. Mas a Escritura nos ensina que, para nos gloriarmos em Deus, precisamos primeiro nos despojar de toda a nossa própria glória.

Aplicação

  • Pare de manter um "placar espiritual". Resista à tentação de avaliar seu dia ou sua semana com base em quantos "méritos" você acumulou (orações, boas ações, etc.). Sua aceitação diante de Deus não flutua com seu desempenho.
  • Substitua o orgulho pela gratidão. Quando você fizer uma boa obra, em vez de sentir orgulho, pratique a gratidão. Diga: "Obrigado, Senhor, por ter me dado a graça e a força para fazer isso". Isso atribui a glória a quem ela é devida.
  • Celebre a graça nos outros sem competição. A mentalidade de mérito gera competição espiritual. A mentalidade da graça nos leva a celebrar as boas obras de nossos irmãos como mais uma evidência da bondade de Deus em ação no mundo.

2. Nossas melhores obras são um presente da graça, não um pagamento a Deus

A Escritura demonstra claramente o valor que todas as nossas obras merecem: elas não podem comparecer diante da majestade de Deus porque estão cheias de impureza. 

Mesmo a perfeita observância da Lei — se fosse possível — não nos daria base para mérito. Jesus nos ensina que, mesmo que tivéssemos feito tudo o que nos foi ordenado, deveríamos nos considerar "servos inúteis", pois apenas cumprimos nosso dever (Lucas 17.10).

Se nem mesmo a obediência perfeita nos daria mérito, o que diremos de nossas obras imperfeitas? Tudo o que há de louvável em nossas ações vem inteiramente da graça de Deus, e não podemos nos atribuir o mínimo crédito. 

Nós não dividimos a glória com Deus; toda a glória pertence a Ele. A única coisa que atribuímos a nós mesmos é a impureza com que manchamos e sujamos até mesmo as obras que, em sua origem, eram boas, pois provinham de Deus.

Ainda assim, o Senhor, em Sua infinita bondade, chama nossas obras de "nossas".

Ele não apenas declara que elas Lhe são agradáveis, mas também promete recompensá-las. Isso deve nos animar a nos esforçarmos incansavelmente no bem, como um ato de gratidão por tamanha liberalidade.

No entanto, essa recompensa não é um salário merecido, mas um presente da graça. 

As boas obras são agradáveis a Deus e recebem grandes benefícios não porque mereçam, mas porque a bondade de Deus, por Sua liberalidade, lhes atribui esse valor. 

É uma tremenda ingratidão, depois de recebermos a graça para fazer o bem, querermos que o que é um dom da liberalidade divina seja tratado como um pagamento pelo mérito de nossas obras.

Aplicação

  • Ofereça suas obras como um "obrigado", não como um "por favor". Suas boas ações não são uma forma de pedir a bênção de Deus; são uma forma de agradecer pela bênção que você já recebeu em Cristo. Isso muda a motivação de medo para alegria.
  • Reconheça a impureza até mesmo em suas melhores ações. Mesmo no ato de servir mais nobre, examine seu coração e você encontrará uma ponta de orgulho, um desejo de reconhecimento ou uma falta de amor perfeito. Isso nos mantém humildes e dependentes.
  • Descanse na generosidade do seu Mestre. Deus não é um chefe mesquinho que paga o mínimo possível. Ele é um Pai generoso que se deleita em recompensar Seus filhos, não porque eles mereçam, mas porque Ele é bom.

3. A fé que justifica não se apoia em si mesma, mas unicamente em Cristo

Aqui chegamos a um dos enganos mais sutis e perigosos. Alguns teólogos, para não descartar totalmente as obras, argumentam que somos justificados pela "fé que opera pelo amor" (Gálatas 5.6). Com isso, eles querem dizer que a fé só tem o poder de justificar por causa da caridade (ou amor) que a acompanha.

Nós concordamos com Paulo que a única fé que justifica é aquela que, por sua natureza, está viva e produz o fruto do amor. Uma fé morta e ociosa não salva. 

No entanto, a fé não extrai sua capacidade de justificar da eficácia da caridade. A única razão pela qual a fé justifica é porque ela nos põe em comunhão com a justiça de Cristo.

O argumento de Paulo em Romanos 4 seria totalmente inválido se isso não fosse verdade. Ele diz:

Romanos 4.4-5
Ora, àquele que opera, não lhe é imputado o galardão segundo a graça, mas segundo a dívida. Mas, àquele que não opera, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça.

Paulo não poderia ser mais claro. A justiça da fé existe precisamente onde não há obras para serem recompensadas. A fé é contada como justiça quando a justiça é dada pela graça, e não por dívida. Em suma, a fé, sem a necessidade das obras, se apoia inteiramente na única misericórdia de Deus.

Aplicação

  • Examine o objeto da sua confiança. Você está confiando na sua fé, na força do seu amor ou em suas boas obras? Ou está confiando unicamente na obra de Cristo por você? A direção da sua confiança é mais importante do que a intensidade dela.
  • Não confunda os frutos da salvação com as raízes da salvação. O amor e as boas obras são os belos e necessários frutos de uma fé salvadora, mas não são as raízes. A raiz é a união com Cristo somente pela fé. Uma árvore não se alimenta de seus próprios frutos.
  • Entenda que a fé é a mão vazia. A fé não contribui com nada para a salvação. Ela é a mão de um mendigo estendida para receber o tesouro da graça de Deus. Seu valor não está na mão, mas no tesouro que ela recebe.

Conclusão

Tudo o que se diz para exaltar os méritos das obras acaba por destruir os dois pilares mais importantes da nossa fé. Primeiro, destrói a glória de Deus. 

Se nossas obras têm algum mérito, então parte da glória da salvação pertence a nós. Mas a Escritura insiste que somos justificados pela graça "para que ninguém se glorie" (Efésios 2.9), mas para que toda a glória seja unicamente do Senhor.

Segundo, destrói a certeza da nossa salvação. Se nossa justiça dependesse, mesmo que minimamente, de nossas obras imperfeitas, nossa consciência viveria em um estado perpétuo de dúvida e ansiedade. 

Mas a Escritura nos ensina que, em Cristo, temos "ousadia e acesso com confiança, pela nossa fé nele" (Efésios 3.12). Essa confiança só é possível quando nosso fundamento não está em nós, mas na obra perfeita e consumada de Cristo.

Portanto, não nos deixemos enganar. A doutrina, a exortação e a consolação da Escritura se fundamentam neste único e sólido alicerce: a renúncia total a qualquer pretensão de mérito, para que possamos descansar completamente na pura e imerecida misericórdia de Deus, recebida somente pela fé em Jesus Cristo.


Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro III - Capítulo XV - "Tudo o que se diz para exaltar os méritos das obras destrói tanto o louvor devido a Deus como a certeza da nossa salvação"

Lista de estudos da série

1. A Conexão Secreta: Como a obra do Espírito Santo nos une a Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

2. O Conhecimento Que Salva: A fé como certeza, não como um salto no escuro – Estudo Bíblico sobre as Institutas

3. O Fruto da Fé: O que é o verdadeiro arrependimento que transforma a vida – Estudo Bíblico sobre as Institutas

4. O Labirinto da Culpa: A liberdade do perdão em contraste com rituais humanos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

5. A Afronta à Cruz: Por que a obra de Cristo não precisa de suplementos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

6. O Mapa da Santidade: Como viver uma vida que realmente honra a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas

7. O Paradoxo da Vida: Por que negar a si mesmo é o caminho para a liberdade – Estudo Bíblico sobre as Institutas

8. A Bênção Disfarçada: O propósito divino de carregar a nossa cruz – Estudo Bíblico sobre as Institutas

9. A Bússola da Alma: Vivendo nesta vida com os olhos fixos na eternidade – Estudo Bíblico sobre as Institutas

10. A Alegria Equilibrada: Como usar os dons de Deus com gratidão e moderação – Estudo Bíblico sobre as Institutas

11. O Veredito da Graça: O que significa ser justificado somente pela fé – Estudo Bíblico sobre as Institutas

12. Diante do Trono: A única perspectiva que revela nossa necessidade da graça – Estudo Bíblico sobre as Institutas

13. Os Dois Pilares da Fé: Como a justificação glorifica a Deus e pacifica a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas

14. A Obra da Graça: O valor das boas obras na vida do crente justificado – Estudo Bíblico sobre as Institutas

15. O Jogo do Mérito: Desconstruindo a confiança nas obras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas

16. A Graça que Santifica: Por que a justificação gratuita produz uma vida santa – Estudo Bíblico sobre as Institutas

17. A Harmonia da Graça: Como as promessas da Lei se cumprem no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas

18. O Presente da Recompensa: Entendendo a motivação por trás das boas obras – Estudo Bíblico sobre as Institutas

19. O Antídoto Duplo: Como a liberdade cristã nos protege do legalismo e da licença – Estudo Bíblico sobre as Institutas

20. A Chave do Tesouro: Descobrindo o poder e o propósito da oração – Estudo Bíblico sobre as Institutas

21. O Mistério da Escolha: A doutrina da eleição como fonte de humildade e segurança – Estudo Bíblico sobre as Institutas

22. A Soberania que Salva: Como a escolha de Deus se revela na história bíblica – Estudo Bíblico sobre as Institutas

23. A Graça que Incomoda: Respondendo às objeções sobre a eleição e a reprovação – Estudo Bíblico sobre as Institutas

24. O Selo da Salvação: Como o chamado de Deus confirma Sua escolha eterna – Estudo Bíblico sobre as Institutas

25. A Esperança que Sustenta: Meditando na ressurreição final para viver hoje – Estudo Bíblico sobre as Institutas

Semeando Vida

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