Todos nós, em algum momento, já fomos assombrados pela ansiedade de uma dívida não paga.
Seja uma conta inesperada que chega pelo correio ou um favor que sentimos que nunca conseguiremos retribuir, a sensação de um débito pendente gera inquietação e rouba a nossa paz. Queremos ter a certeza de que a dívida foi quitada, de que estamos livres.
Essa ansiedade humana universal muitas vezes se infiltra em nossa vida espiritual. Mesmo depois de abraçar a fé em Cristo, uma pergunta incômoda pode surgir no fundo da nossa mente: "Será que o que Cristo fez foi realmente suficiente?
E os pecados que cometi *depois* de crer? Não haveria uma 'pena' adicional a ser paga? Não preciso fazer algo mais para 'compensar' minhas falhas?".
É nesse solo fértil da insegurança humana que floresceram duas doutrinas que se afastam drasticamente da pureza do Evangelho: as indulgências e o purgatório.
Elas são apresentadas como "suplementos" à obra de Cristo, como formas de lidar com a dívida remanescente do pecado. Mas, ao olharmos para a Palavra de Deus, surge uma questão fundamental: a obra de Cristo na cruz precisa de suplementos, ou ela é totalmente suficiente?
No estudo bíblico anterior, vimos como o verdadeiro arrependimento é um fruto da fé, e não uma obra humana para merecer o perdão.
Agora, vamos desmascarar essas duas invenções que nasceram de uma compreensão equivocada da satisfação pelo pecado. Veremos que, longe de serem ajudas piedosas, elas representam uma perigosa afronta à suficiência do sacrifício de Jesus e uma armadilha que rouba dos fiéis a paz e a segurança que Ele conquistou para nós.
1. As indulgências são uma afronta ao sacrifício perfeito de Cristo
A doutrina das indulgências parte de uma ideia fantasiosa: a de que existe um "tesouro da Igreja". Esse tesouro seria composto pelos méritos infinitos de Cristo, somados aos méritos "excedentes" dos apóstolos e dos mártires.
Eles teriam feito mais boas obras do que o necessário para sua própria salvação, e esse "saldo positivo" ficaria em uma espécie de conta espiritual celestial, administrada pelo papa. As indulgências, então, seriam "saques" desse tesouro para cobrir a falta de mérito dos fiéis comuns.
À primeira vista, pode parecer uma ideia engenhosa, mas, na realidade, é uma terrível profanação do sangue de Cristo.
Afirmar que a obra de Cristo precisa ser suplementada pelos méritos dos mártires é rebaixar o Salvador ao nível de um homem comum. É abandonar o único nome pelo qual podemos ser salvos e tratar Cristo como apenas mais um santo em uma longa lista.
A Escritura é clara e unânime em afirmar a total suficiência de Cristo. O apóstolo João declara:
1 João 1.7
[...] o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado.
Note a palavra: "todo" pecado, não uma parte dele. Da mesma forma, Pedro pregou que "todo o que nele crê recebe remissão de pecados pelo seu nome" (Atos 10.43). A remissão não vem pelo nome de Pedro, Paulo ou dos mártires, mas unicamente pelo nome de Jesus.
Os próprios pais da Igreja, como Agostinho, combateram essa ideia. Ele disse: "ainda que morramos por nossos irmãos, o sangue de nenhum mártir é derramado para a remissão dos pecados. Cristo fez isso por nós".
O sacrifício dos mártires nos dá exemplos de paciência, mas não dons de justiça. Somente o Senhor Jesus foi crucificado por nós, morreu por nós e pagou a nossa dívida. Ele, e somente Ele, deve ser pregado, nomeado e olhado como nossa única esperança de expiação e santificação.
Aplicação
- Abandone a mentalidade de "conta bancária espiritual". Em nossa vida com Deus, não operamos com débitos e créditos. Operamos com base em um presente. Você não precisa "acumular méritos" para compensar seus erros. O mérito de Cristo já foi creditado a você pela fé.
- Glorifique a Deus pelo testemunho dos mártires, mas não confie neles. A vida dos grandes homens e mulheres de fé deve nos inspirar a uma maior paciência e coragem, mas nunca deve se tornar um objeto de confiança para a nossa salvação. Nossa confiança está depositada unicamente na rocha que é Cristo.
- Verifique se você não está criando suas próprias "indulgências". Às vezes, pensamos que se fizermos uma boa obra (orar mais, dar uma oferta generosa, servir na igreja) podemos "compensar" um pecado recente. Isso é uma forma de indulgência pessoal. A única resposta para o pecado é o arrependimento e a fé no sangue purificador de Cristo, não a tentativa de compensação.
2. O sofrimento dos crentes não contribui para a salvação, mas para a edificação da igreja
Para tentar justificar a ideia de que os méritos dos santos podem ser aplicados a outros, os defensores das indulgências distorcem gravemente a passagem de Colossenses 1.24, onde Paulo diz: "agora me alegro nos meus sofrimentos por vós e preencho o que resta das aflições de Cristo na minha carne, pelo seu corpo, que é a igreja".
Eles interpretam isso como se Paulo estivesse dizendo que algo faltou na obra redentora de Cristo, e que seu próprio sofrimento estava "completando" essa deficiência.
Isso é uma blasfêmia. Paulo, que pregou tão vigorosamente que a graça de Cristo superabunda o pecado (Romanos 5.15), jamais diria que essa graça é incompleta.
O verdadeiro significado da passagem é belo e profundo. Cristo, a Cabeça, sofreu uma vez por todas para a nossa redenção. Agora, Seu corpo, a Igreja, continua a sofrer no mundo enquanto cumpre sua missão.
Cristo, em Sua honra, considera os sofrimentos de Seus membros como Seus próprios sofrimentos. O "que resta" não é na obra de expiação de Cristo, mas na quota de aflições que a Igreja deve suportar neste mundo até o dia de Sua volta.
Paulo não estava sofrendo para redimir, reconciliar ou satisfazer pela Igreja, mas para a edificação e o crescimento dela. Ele diz em outro lugar que sofre "tudo por amor dos eleitos, para que também eles alcancem a salvação que está em Cristo Jesus" (2 Timóteo 2.10). Seu sofrimento era um meio de levar o Evangelho a eles, não de pagar pelos seus pecados.
Aplicação
- Reinterprete seu próprio sofrimento. Quando você, como cristão, passa por aflições por causa de sua fé, não pense que está pagando por seus pecados. Pense que você está participando das aflições do corpo de Cristo, e que sua perseverança serve para edificar e fortalecer seus irmãos.
- Honre a graça de Deus em sua totalidade. A graça de Deus não está trancada em um pedaço de pergaminho, como nas bulas de indulgência, mas é distribuída livremente pela pregação da Palavra do Evangelho. Não busque a graça em rituais humanos, mas na Palavra viva de Deus.
- Lembre-se do propósito do ministério. Os pastores e líderes não são constituídos para serem redentores ou mediadores, mas para serem pregadores do Evangelho, conforme a dispensação que lhes foi confiada.
3. O purgatório é uma invenção perigosa que nega a certeza da salvação
Assim como as indulgências, a doutrina do purgatório é uma invenção humana que busca expiar pecados em outro lugar que não seja o sangue de Cristo.
A ideia de que as almas dos que morreram na fé precisam sofrer uma pena para satisfazer pelos seus pecados é uma afronta direta à misericórdia de Deus e destrói a fé do crente.
O que é o purgatório senão a afirmação de que o sangue de Cristo não é suficiente para nos purificar? Se a Bíblia diz que o sangue de Jesus nos purifica de *todo* pecado, que necessidade haveria de um fogo purificador após a morte? É uma blasfêmia horrível contra Cristo.
Para sustentar essa doutrina, seus defensores recorrem a textos bíblicos fora de contexto. Um dos principais é a passagem de 1 Coríntios 3.12-15, que fala sobre o construtor cuja obra de "madeira, feno, palha" é queimada pelo fogo, mas "ele mesmo será salvo, contudo, como que através do fogo".
No entanto, uma leitura atenta do contexto mostra que Paulo não está falando da purificação da alma de um crente, mas do teste da doutrina de um mestre.
O "fundamento" é Cristo. "Ouro, prata e pedras preciosas" são ensinamentos verdadeiros e sólidos. "Madeira, feno e palha" são doutrinas humanas, vãs e inúteis. O "fogo" é o exame do Espírito Santo no "Dia do Senhor", que revelará a qualidade do ensino de cada um.
O mestre que ensinou doutrinas falsas (palha) perderá sua recompensa (sua obra será queimada), mas se ele mesmo se manteve no fundamento que é Cristo, ele será salvo, escapando por pouco, "como que através do fogo". Não há nada aqui sobre a punição de almas após a morte.
A doutrina do purgatório é perigosa porque rouba do crente a paz e a segurança. A Escritura nos oferece um consolo muito mais sólido:
Apocalipse 14.13
Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem dos seus trabalhos.
A promessa para o crente não é tormento, mas descanso. Não é purificação, mas a presença imediata com o Senhor, como Jesus prometeu ao ladrão na cruz: "hoje estarás comigo no paraíso" (Lucas 23.43).
Aplicação
- Rejeite qualquer ensino que não tenha base na Palavra de Deus. O purgatório é um exemplo clássico de uma doutrina construída sobre especulações humanas e textos mal interpretados, e não sobre o ensino claro das Escrituras. Devemos ser como os bereanos, examinando tudo à luz da Palavra.
- Encontre consolo na certeza do Evangelho, não em rituais pelos mortos. A prática de orar pelos mortos surgiu de um sentimento humano compreensível, mas sem base bíblica. Nosso consolo na perda de um ente querido que morreu em Cristo não vem do que fazemos por ele, mas da certeza do que Cristo já fez por ele.
- Descanse na obra finalizada de Cristo. Se o purgatório é uma resposta à pergunta "como os pecados são purificados?", a resposta do Evangelho é "pelo sangue de Jesus". Viva na liberdade e na paz que vêm dessa verdade consumada.
Conclusão
As indulgências e o purgatório, embora pareçam tratar de questões diferentes, nascem da mesma raiz venenosa: a dúvida sobre a total suficiência do sacrifício de Jesus Cristo.
Ambos são suplementos humanos a uma obra divina que é perfeita e completa. Ambos desviam nossa confiança de Cristo para colocá-la em méritos de santos, em rituais da igreja ou em sofrimentos futuros.
O Evangelho nos chama para longe dessas invenções perigosas e nos convida a descansar. Descansar na verdade de que a obra de Cristo não precisa de acréscimos.
Descansar na certeza de que o Seu sangue nos purifica de *todo* pecado. Descansar na promessa de que, para aqueles que morrem no Senhor, o que os espera não é um fogo de purificação, mas o descanso de seus trabalhos e a alegria da presença de seu Salvador.
Que possamos, pela graça de Deus, rejeitar firmemente qualquer doutrina que diminua a glória de Cristo e lançar fora qualquer ensinamento que perturbe a paz que Ele nos comprou a tão alto preço. A obra está consumada. A dívida está paga. Descansemos Nele.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro III - Capítulo V - "Suplementos que os papas acrescentam à satisfação: as indulgências e o purgatório"
Lista de estudos da série
1. A Conexão Secreta: Como a obra do Espírito Santo nos une a Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. O Conhecimento Que Salva: A fé como certeza, não como um salto no escuro – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. O Fruto da Fé: O que é o verdadeiro arrependimento que transforma a vida – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Labirinto da Culpa: A liberdade do perdão em contraste com rituais humanos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. A Afronta à Cruz: Por que a obra de Cristo não precisa de suplementos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. O Mapa da Santidade: Como viver uma vida que realmente honra a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. O Paradoxo da Vida: Por que negar a si mesmo é o caminho para a liberdade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. A Bênção Disfarçada: O propósito divino de carregar a nossa cruz – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Bússola da Alma: Vivendo nesta vida com os olhos fixos na eternidade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. A Alegria Equilibrada: Como usar os dons de Deus com gratidão e moderação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. O Veredito da Graça: O que significa ser justificado somente pela fé – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Diante do Trono: A única perspectiva que revela nossa necessidade da graça – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Os Dois Pilares da Fé: Como a justificação glorifica a Deus e pacifica a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. A Obra da Graça: O valor das boas obras na vida do crente justificado – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Jogo do Mérito: Desconstruindo a confiança nas obras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. A Graça que Santifica: Por que a justificação gratuita produz uma vida santa – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. A Harmonia da Graça: Como as promessas da Lei se cumprem no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas
18. O Presente da Recompensa: Entendendo a motivação por trás das boas obras – Estudo Bíblico sobre as Institutas
19. O Antídoto Duplo: Como a liberdade cristã nos protege do legalismo e da licença – Estudo Bíblico sobre as Institutas
20. A Chave do Tesouro: Descobrindo o poder e o propósito da oração – Estudo Bíblico sobre as Institutas
21. O Mistério da Escolha: A doutrina da eleição como fonte de humildade e segurança – Estudo Bíblico sobre as Institutas
22. A Soberania que Salva: Como a escolha de Deus se revela na história bíblica – Estudo Bíblico sobre as Institutas
23. A Graça que Incomoda: Respondendo às objeções sobre a eleição e a reprovação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
24. O Selo da Salvação: Como o chamado de Deus confirma Sua escolha eterna – Estudo Bíblico sobre as Institutas
25. A Esperança que Sustenta: Meditando na ressurreição final para viver hoje – Estudo Bíblico sobre as Institutas