Qualquer leitor atento da Bíblia já se deparou com um dilema que pode gerar uma profunda ansiedade espiritual.
Em um momento, lemos passagens na Lei, como em Deuteronômio, que parecem dizer: "Se você obedecer, será abençoado".
Em outro, nos deparamos com o apóstolo Paulo, que declara enfaticamente que somos justificados somente pela fé, e não pelas obras.
Essa aparente tensão pode nos deixar confusos. Afinal, a salvação e o favor de Deus dependem de quê? Das nossas obras ou da nossa fé?
Se dependem das obras, como podemos ter certeza de que fizemos o suficiente? E se é somente pela fé, o que fazemos com todas as promessas que Deus fez àqueles que guardam Seus mandamentos? Elas são inúteis? Foram canceladas?
No estudo bíblico anterior, refutamos as calúnias de que a doutrina da justificação pela fé nos torna inimigos das boas obras.
Mostramos que negamos que as obras justifiquem não para que elas não sejam feitas, mas para que não confiemos nelas. Nossa única âncora é Cristo. Agora, Satanás, através de seus ministros, nos ataca com outros argumentos, tentando diminuir a justificação pela fé ao exaltar as promessas da Lei.
Preparemo-nos para mais uma batalha, pois a pergunta que nos guiará é crucial para a nossa paz: como as promessas da Lei, que parecem recompensar o mérito, se harmonizam com as promessas do Evangelho, que se baseiam puramente na graça?
Ao entendermos essa concordância, nossa fé será fortalecida e nossa consciência encontrará um repouso ainda mais profundo.
1. As promessas da Lei são boas, mas ineficazes para nós por causa do pecado
Nossos adversários se armam com as promessas que Deus fez na Lei àqueles que a guardam. Eles perguntam: essas promessas são vãs ou têm algum valor?
Se dissermos que são vãs, desonramos a Deus. Se dissermos que têm valor, eles concluem que, portanto, não somos justificados somente pela fé, mas também pelas obras que cumprem a Lei.
O raciocínio parece lógico, mas falha em um ponto crucial. Como já demonstramos, as promessas da Lei são condicionais. Elas oferecem vida e bênção "àquele que cumpre" perfeitamente todos os mandamentos.
A questão é: quem consegue fazer isso? A resposta da Escritura é: ninguém. A Lei, ao se deparar com nossa natureza pecaminosa, não nos traz bênção, mas maldição, pois nos convence de nossa transgressão (Deuteronômio 27.26).
Por essa razão, para sermos livres da condenação da Lei, precisamos sair de sua jurisdição. Não com uma liberdade carnal, que nos permite pecar à vontade, mas com uma liberdade espiritual, que consola e confirma nossa consciência, mostrando-lhe que ela está livre da maldição que a atormentava. Essa liberdade é alcançada quando, pela fé, nos apropriamos da misericórdia de Deus em Cristo.
Portanto, as promessas da Lei, em si mesmas, são boas, mas se tornam ineficazes para nós *como meio de justificação*, pois jamais conseguiremos cumprir a condição que elas exigem. Ao nos apegarmos à Lei para obter justiça, acabamos despojados de toda bênção, restando-nos apenas a maldição.
Aplicação
- Leia a Lei com a perspectiva correta. Não leia os mandamentos do Antigo Testamento como um caminho para ganhar o favor de Deus. Leia-os para entender a santidade de Deus, a profundidade do seu próprio pecado e a sua desesperada necessidade de um Salvador.
- Reconheça a futilidade da autojustificação. Quando se sentir tentado a confiar em sua própria bondade moral, lembre-se de que a Lei exige perfeição. Essa verdade o levará a abandonar a confiança em si mesmo e a se apegar mais firmemente a Cristo.
- Agradeça a Deus pela liberdade em Cristo. Celebre o fato de que, em Cristo, você foi liberto da maldição da Lei. Sua posição diante de Deus não é mais a de um escravo que precisa cumprir tarefas impossíveis, mas a de um filho amado.
2. A graça do Evangelho é a chave que ativa as promessas de Deus
Se as promessas da Lei são ineficazes por si mesmas, então elas foram dadas em vão? De modo algum. O que a Lei não podia fazer, por causa da nossa fraqueza, o Evangelho torna possível. A graça de Deus não anula as promessas, mas nos capacita a recebê-las por um novo fundamento.
O Apóstolo Paulo diz que a admirável promessa "o homem que fizer estas coisas viverá por elas" (Romanos 10.5) não tem nenhum valor para nós enquanto nos detivermos na Lei, pois ninguém consegue cumpri-la.
No entanto, quando as promessas do Evangelho — que anunciam o perdão gratuito dos pecados — são propostas, elas não apenas nos tornam aceitáveis a Deus, mas também fazem com que nossas obras, agora fruto da fé, também Lhe sejam agradáveis.
Em outras palavras, as bênçãos prometidas na Lei à obediência perfeita são, de fato, concedidas aos crentes, mas não por causa do mérito de suas obras.
Elas são concedidas por causa da graça do Evangelho, que nos aceita em Cristo e, consequentemente, aceita também os frutos imperfeitos que produzimos Nele. Assim, a graça do Evangelho não se opõe às promessas da Lei, mas as cumpre em nós por um caminho diferente.
Confessamos que as obras dos fiéis são recompensadas com o mesmo galardão que o Senhor prometeu na Sua Lei. No entanto, ao considerar essa recompensa, devemos sempre lembrar a *causa* pela qual as obras são agradáveis a Deus.
E há três causas:
- Primeira: Deus, não olhando para a imperfeição de nossas obras, nos abraça em Cristo e, somente pela fé, nos reconcilia consigo.
- Segunda: Por Sua pura bondade paternal, Ele honra essas obras, dando-lhes um valor que elas não possuem em si mesmas.
- Terceira: Ele as recebe com misericórdia, não imputando as imperfeições que as mancham.
Aplicação
- Veja a graça como o fundamento de tudo. Tudo de bom que você recebe de Deus — desde as bênçãos materiais até as espirituais — não é um salário, mas um presente. Cultive um coração que vê a graça em toda parte.
- Sirva a Deus com confiança. Como suas obras são aceitas não por sua perfeição, mas pela graça de Deus em Cristo, você pode servir com liberdade e alegria, sem o medo paralisante de nunca ser "bom o suficiente".
- Entenda o perdão contínuo. As imperfeições de suas melhores obras são cobertas pela perfeição de Cristo. Isso significa que você precisa do perdão de Deus não apenas por seus pecados, mas também pela imperfeição de suas virtudes.
3. A fé em Cristo é a única base para as obras agradáveis a Deus
A Escritura é clara: Deus, considerado em Sua natureza, não tem nada que o mova a ter misericórdia de nós, a não ser nossa pura miséria. Ele nos encontra despidos de todo bem e carregados de todo mal. A iniciativa do amor é sempre Dele. A pergunta é: como Ele nos aceita?
O caso de Cornélio, o centurião romano, é instrutivo. O anjo lhe diz que suas orações e esmolas "subiram para memória diante de Deus" (Atos 10.4). Nossos adversários usam isso para argumentar que as boas obras preparam o homem para receber a graça de Deus.
No entanto, é o contrário. Para que Cornélio temesse a Deus e amasse a justiça, era necessário que ele já tivesse sido iluminado pelo Espírito de sabedoria e santificado pelo mesmo Espírito.
Suas boas obras não eram a causa de ele receber a graça; eram a evidência de que ele já havia recebido a graça. Deus não ama e aceita o bem que o Espírito Santo opera em Seus filhos? Sim, sem dúvida. Mas devemos sempre lembrar do princípio fundamental: Deus não encontra em nós nada para amar, exceto o que Ele mesmo nos deu pela Sua graça.
Depois que o Senhor nos resgata do abismo da perdição e nos regenera, Ele nos abraça como uma nova criatura, com os dons de Seu Espírito.
É por isso que os crentes, mesmo em suas obras, são agradáveis a Deus. No entanto, essa aceitação das obras está sempre enraizada no amor gratuito que Ele nos professa, um amor que precede qualquer dom ou boa obra.
Aplicação
- Confie na iniciativa de Deus. Se você tem qualquer desejo por Deus, qualquer temor a Ele, qualquer amor pela justiça, saiba que isso não se originou em você. É um dom da graça Dele. Agradeça a Ele por ter iniciado a obra em seu coração.
- Não inverta a ordem da salvação. As boas obras não nos levam à graça; a graça nos leva às boas obras. Manter essa ordem em mente nos protege tanto do legalismo (que confia nas obras) quanto do antinomianismo (que despreza as obras).
- Veja suas boas obras como evidência, não como causa. Quando você consegue fazer o bem, não use isso como base para orgulho, mas como uma confirmação da obra da graça de Deus em sua vida. Isso deve levar à gratidão, não à arrogância.
Conclusão
A concordância entre as promessas da Lei e as do Evangelho é uma das verdades mais libertadoras da fé cristã. Não precisamos anular a Lei para abraçar o Evangelho. As promessas de bênção de Deus para a obediência permanecem válidas, mas o caminho para recebê-las foi radicalmente alterado.
Não as alcançamos mais pelo caminho impossível do mérito e da obediência perfeita, mas pelo caminho gracioso da fé em Jesus Cristo.
É somente quando somos justificados gratuitamente pela fé que nossas obras, antes impuras e inaceitáveis, são recebidas por Deus como agradáveis, não por causa de seu próprio valor, mas porque Ele nos olha através da perfeição de Seu Filho amado.
Assim, a justificação pela fé não nos torna inimigos das boas obras. Pelo contrário, ela é a única doutrina que as torna possíveis e significativas, transformando-as de tentativas desesperadas de ganhar o favor de Deus em respostas alegres e gratas à graça que já recebemos.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro III - Capítulo XVII - "Concordância entre as promessas da Lei e as do Evangelho"
Lista de estudos da série
1. A Conexão Secreta: Como a obra do Espírito Santo nos une a Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. O Conhecimento Que Salva: A fé como certeza, não como um salto no escuro – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. O Fruto da Fé: O que é o verdadeiro arrependimento que transforma a vida – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Labirinto da Culpa: A liberdade do perdão em contraste com rituais humanos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. A Afronta à Cruz: Por que a obra de Cristo não precisa de suplementos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. O Mapa da Santidade: Como viver uma vida que realmente honra a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. O Paradoxo da Vida: Por que negar a si mesmo é o caminho para a liberdade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. A Bênção Disfarçada: O propósito divino de carregar a nossa cruz – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Bússola da Alma: Vivendo nesta vida com os olhos fixos na eternidade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. A Alegria Equilibrada: Como usar os dons de Deus com gratidão e moderação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. O Veredito da Graça: O que significa ser justificado somente pela fé – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Diante do Trono: A única perspectiva que revela nossa necessidade da graça – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Os Dois Pilares da Fé: Como a justificação glorifica a Deus e pacifica a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. A Obra da Graça: O valor das boas obras na vida do crente justificado – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Jogo do Mérito: Desconstruindo a confiança nas obras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. A Graça que Santifica: Por que a justificação gratuita produz uma vida santa – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. A Harmonia da Graça: Como as promessas da Lei se cumprem no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas
18. O Presente da Recompensa: Entendendo a motivação por trás das boas obras – Estudo Bíblico sobre as Institutas
19. O Antídoto Duplo: Como a liberdade cristã nos protege do legalismo e da licença – Estudo Bíblico sobre as Institutas
20. A Chave do Tesouro: Descobrindo o poder e o propósito da oração – Estudo Bíblico sobre as Institutas
21. O Mistério da Escolha: A doutrina da eleição como fonte de humildade e segurança – Estudo Bíblico sobre as Institutas
22. A Soberania que Salva: Como a escolha de Deus se revela na história bíblica – Estudo Bíblico sobre as Institutas
23. A Graça que Incomoda: Respondendo às objeções sobre a eleição e a reprovação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
24. O Selo da Salvação: Como o chamado de Deus confirma Sua escolha eterna – Estudo Bíblico sobre as Institutas
25. A Esperança que Sustenta: Meditando na ressurreição final para viver hoje – Estudo Bíblico sobre as Institutas
