Todos nós, em algum momento da jornada cristã, já nos perguntamos sobre o valor de nossas boas obras.
Esforçamo-nos para viver de modo correto, servimos na igreja, ajudamos o próximo e, no fundo, uma pequena voz sussurra: "Isso deve contar para alguma coisa, certo?". Queremos acreditar que nosso esforço contribui, de alguma forma, para a nossa posição diante de Deus.
Essa é uma inclinação humana natural. Queremos ter algo em que nos apoiar, algo que possamos apresentar a Deus como prova de nossa sinceridade e valor.
No entanto, essa mentalidade, por mais bem-intencionada que seja, pode se tornar um terreno perigoso, minando o fundamento da nossa salvação e nos deixando sem a paz e a segurança que tanto almejamos.
No estudo bíblico anterior, estabelecemos a verdade fundamental da justificação gratuita: somos declarados justos diante de Deus unicamente pela fé em Cristo, não por nossas obras.
Agora, precisamos aprofundar essa verdade, demonstrando de forma palpável por que isso é tão necessário. Para fazer isso, vamos analisar o valor — ou a falta dele — da justiça humana em cada estágio da vida, desde o homem natural até o crente mais devoto.
A pergunta que nos guiará é crucial para a nossa liberdade espiritual: qual é a verdadeira natureza da justiça do homem quando examinada, não sob a luz da comparação humana, mas sob a luz ofuscante do tribunal de Deus?
Compreender isso nos levará a um descanso mais profundo na graça e a uma motivação mais pura para a santidade.
1. A "justiça" do homem natural é uma ilusão diante de Deus
Muitas vezes, olhamos para pessoas não-crentes que exibem virtudes admiráveis — honestidade, generosidade, coragem — e nos perguntamos sobre o valor dessas ações.
A Bíblia não nega que essas qualidades existam. De fato, elas são dons da graça comum de Deus, ferramentas que Ele usa para preservar a ordem e a beleza na sociedade.
No entanto, quando se trata de obter justiça diante de Deus, essas obras, por mais nobres que pareçam aos olhos humanos, são insuficientes. Por quê? Porque Deus não julga apenas a ação externa, mas a intenção do coração.
O único fim perpétuo da verdadeira justiça é o serviço a Deus. Qualquer ação que tenha outro fim — seja a busca por reconhecimento, o amor-próprio ou a ambição — deixa de ser justa em seu cerne, por mais boa que pareça por fora.
Como disse Agostinho de Hipona, um antigo pai da igreja, os grandes heróis de Roma, como Catão e Cipião, pecaram em seus atos mais admiráveis, pois, privados da luz da fé, não dirigiram suas obras ao único fim devido: a glória de Deus.
A vida de uma pessoa sem Cristo é como a de alguém que corre com grande velocidade fora do caminho certo; quanto mais rápido corre, mais se afasta de seu destino e mais miserável se torna.
A Palavra de Deus é categórica ao afirmar que "tudo o que não provém de fé é pecado" (Romanos 14.23) e que "sem fé é impossível agradar a Deus" (Hebreus 11.6). Portanto, qualquer obra feita antes da reconciliação com Deus pela fé, por mais esplêndida que seja, é maldita e merece condenação, não justiça.
Aplicação
- Avalie o "porquê" por trás do "o quê". Em suas próprias ações, mesmo nas mais simples, pergunte-se: "Estou fazendo isso para a glória de Deus ou para a minha própria glória?". A motivação do coração é o que dá valor espiritual a uma obra.
- Reconheça a graça comum. Agradeça a Deus pelas virtudes que você vê em pessoas não-crentes. Elas são um presente Dele para o mundo. No entanto, não confunda esses dons com a justiça salvadora, que só se encontra em Cristo.
- Use esta verdade no evangelismo. Muitas pessoas pensam que são "boas o suficiente" para Deus porque não cometem grandes crimes. Ajude-as a entender que a questão não é apenas a ausência de obras más, mas a ausência de um coração que faz tudo para a glória de Deus.
2. A "justiça" do religioso e do hipócrita é contaminação diante de Deus
Passando para aqueles que professam o nome de Cristo, mas não foram verdadeiramente regenerados, encontramos um problema semelhante, mas mais sutil.
Aqui se incluem tanto os cristãos nominais, cuja vida contradiz sua confissão, quanto os hipócritas, que escondem a maldade do coração sob uma fachada de piedade.
Eles podem realizar muitas obras que parecem boas: frequentam a igreja, dão ofertas, participam de ministérios. No entanto, como seus corações ainda não foram purificados pela fé genuína, suas obras são contaminadas pela impureza da fonte.
A Palavra de Deus nos adverte severamente contra a tentativa de agradá-Lo com rituais externos enquanto o coração permanece impuro.
O profeta Ageu nos oferece uma ilustração poderosa:
Ageu 2.12-14
Se alguém levar carne santa na orla da sua veste, e com a sua orla tocar no pão, ou no guisado, ou no vinho, ou no azeite, ou em qualquer outro mantimento, porventura, ficará isto santificado? [...] Se um imundo por um corpo morto tocar em alguma destas coisas, porventura, ficará ela imunda? [...] Assim é este povo, e assim é esta nação diante de mim, diz o SENHOR; e assim é toda a obra das suas mãos; e tudo o que ali oferecem imundo é.
A santidade não é contagiosa, mas a impureza é. Uma obra, por mais santa que seja em si mesma (como a oferta no templo), quando tocada por uma mão impura (um coração não regenerado), torna-se imunda diante de Deus.
O Senhor, por meio de Isaías, declara que detesta os sacrifícios, as festas e as orações daqueles cujos corações estão cheios de maldade. O primeiro fundamento para que nossas obras sejam agradáveis a Deus é um coração purificado pela fé.
Aplicação
- Cuidado com o ativismo religioso. É possível estar muito ocupado "fazendo coisas para Deus" enquanto o coração está longe Dele. A prioridade não é o serviço, mas a comunhão. Um coração puro que ama a Deus produzirá naturalmente um serviço que Lhe agrada.
- Entenda o verdadeiro arrependimento. Deus não se impressiona com nossas obras piedosas se continuarmos a nutrir pecado no coração. A mensagem Dele para os hipócritas é sempre: "Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos" (Isaías 1.16).
- Lembre-se da ordem divina: pessoa antes de obra. Deus primeiro olhou com agrado para Abel, e depois para sua oferta (Gênesis 4.4). Deus primeiro nos aceita em Cristo pela fé; só então Ele pode olhar com agrado para nossas obras, que são fruto dessa aceitação.
3. Mesmo as melhores obras do crente são imperfeitas e insuficientes
Agora chegamos ao ponto mais crucial e desafiador: qual é o valor da justiça de um verdadeiro crente, regenerado pelo Espírito de Deus?
Mesmo depois que Deus nos reconcilia consigo mesmo e o Espírito Santo começa a habitar em nós, permanecem em nós resquícios de imperfeição. Nenhuma obra de um santo, por mais excelente que seja, se examinada sob o rigoroso juízo de Deus, deixaria de ser digna de condenação. Por quê?
Primeiro, porque mesmo a obra mais nobre que fazemos está manchada por alguma impureza da nossa carne. Sempre há uma medida de fraqueza, uma ponta de orgulho, uma falta daquela alegria e zelo perfeitos que deveríamos ter. Se diante de Deus nem mesmo as estrelas são puras, como poderiam nossas obras imperfeitas ser?
Segundo, mesmo que pudéssemos realizar uma única obra perfeita, um só pecado é suficiente para apagar e destruir todo o mérito de qualquer justiça anterior.
Como diz Tiago, "qualquer que guardar toda a lei, mas tropeçar em um só ponto, tem-se tornado culpado de todos" (Tiago 2.10). Como a vida de nenhum crente é isenta de pecado, qualquer justiça que pudéssemos acumular seria constantemente corrompida e anulada.
Por fim, a Lei de Deus não exige obras isoladas, mas uma obediência perpétua e perfeita. Se buscamos a justiça pela Lei, não adianta apresentar uma ou duas boas ações; é preciso cumprir tudo. Como isso é impossível para nós, fica claro que nossa justiça não pode, de forma alguma, se basear em nossas obras.
Aplicação
- Seja honesto sobre suas imperfeições. Escolha sua melhor obra da última semana. Examine-a honestamente diante de Deus. Você consegue encontrar nela alguma falha, algum motivo misto, alguma falta de amor perfeito? Usar essa "lupa" divina nos mantém humildes e gratos.
- Não se desespere com sua imperfeição. Essa verdade não é para nos esmagar, mas para nos fazer correr para a cruz. A imperfeição de nossas obras serve para nos lembrar constantemente de nossa necessidade da perfeição de Cristo.
- Entenda que a salvação é um perdão contínuo. A justificação não é um evento único que nos perdoa dos pecados passados, para que então busquemos a justiça por nossas obras. É um estado contínuo de perdão, no qual a misericórdia de Deus nos absolve perpetuamente.
Conclusão
Quando examinamos a justiça humana sob a luz do tribunal de Deus, a conclusão é esmagadora e libertadora. Seja qual for o tipo de homem — o pagão virtuoso, o religioso hipócrita ou mesmo o crente regenerado —, nenhuma obra que proceda dele pode servir como base para a justificação.
As obras do homem natural são corrompidas pela intenção. As obras do hipócrita são contaminadas pela impureza do coração. E as obras do crente, embora sinceras, são manchadas pela imperfeição de sua carne.
Isso nos deixa em que posição? Despojados de toda justiça própria, sem nada para apresentar a Deus senão nossa miséria e necessidade. E é exatamente aí que a beleza do Evangelho brilha com mais intensidade.
Somos justificados não com base em quem somos ou no que fazemos, mas unicamente com base em quem Cristo é e no que Ele fez por nós.
Nossa justiça não é encontrada em nossas obras, mas na gratuita imputação da justiça de Cristo. Somos reconciliados com Deus não por nosso esforço, mas pelo sacrifício Dele.
Que essa verdade nos humilhe e, ao mesmo tempo, nos encha da mais profunda paz, segurança e gratidão, sabendo que nossa posição diante de Deus não depende de nós, mas está firmemente ancorada na obra consumada de nosso Salvador.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro III - Capítulo XIV - "Qual é o princípio da justificação e seu progresso contínuo"
Lista de estudos da série
1. A Conexão Secreta: Como a obra do Espírito Santo nos une a Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. O Conhecimento Que Salva: A fé como certeza, não como um salto no escuro – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. O Fruto da Fé: O que é o verdadeiro arrependimento que transforma a vida – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Labirinto da Culpa: A liberdade do perdão em contraste com rituais humanos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. A Afronta à Cruz: Por que a obra de Cristo não precisa de suplementos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. O Mapa da Santidade: Como viver uma vida que realmente honra a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. O Paradoxo da Vida: Por que negar a si mesmo é o caminho para a liberdade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. A Bênção Disfarçada: O propósito divino de carregar a nossa cruz – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Bússola da Alma: Vivendo nesta vida com os olhos fixos na eternidade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. A Alegria Equilibrada: Como usar os dons de Deus com gratidão e moderação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. O Veredito da Graça: O que significa ser justificado somente pela fé – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Diante do Trono: A única perspectiva que revela nossa necessidade da graça – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Os Dois Pilares da Fé: Como a justificação glorifica a Deus e pacifica a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. A Obra da Graça: O valor das boas obras na vida do crente justificado – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Jogo do Mérito: Desconstruindo a confiança nas obras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. A Graça que Santifica: Por que a justificação gratuita produz uma vida santa – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. A Harmonia da Graça: Como as promessas da Lei se cumprem no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas
18. O Presente da Recompensa: Entendendo a motivação por trás das boas obras – Estudo Bíblico sobre as Institutas
19. O Antídoto Duplo: Como a liberdade cristã nos protege do legalismo e da licença – Estudo Bíblico sobre as Institutas
20. A Chave do Tesouro: Descobrindo o poder e o propósito da oração – Estudo Bíblico sobre as Institutas
21. O Mistério da Escolha: A doutrina da eleição como fonte de humildade e segurança – Estudo Bíblico sobre as Institutas
22. A Soberania que Salva: Como a escolha de Deus se revela na história bíblica – Estudo Bíblico sobre as Institutas
23. A Graça que Incomoda: Respondendo às objeções sobre a eleição e a reprovação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
24. O Selo da Salvação: Como o chamado de Deus confirma Sua escolha eterna – Estudo Bíblico sobre as Institutas
25. A Esperança que Sustenta: Meditando na ressurreição final para viver hoje – Estudo Bíblico sobre as Institutas
