Muitos de nós já sentimos a frustração de uma fé que parece estagnada. Acreditamos em Jesus, celebramos o perdão dos nossos pecados, mas, ao olharmos para a nossa vida diária, a mudança real parece lenta, difícil e, por vezes, inexistente.
Mantemos os mesmos hábitos pecaminosos, lutamos com as mesmas fraquezas e nos perguntamos: "Se a fé em Cristo é tão poderosa, por que a minha vida não reflete essa transformação?".
Essa tensão entre o que cremos e como vivemos pode nos levar a um lugar de desânimo. Começamos a questionar se nossa fé é genuína ou se nos falta algo essencial.
Alguns chegam a pensar que precisam "se consertar" primeiro, que o arrependimento é uma tarefa hercúlea que devemos completar para, então, sermos dignos de receber a graça de Deus.
O Evangelho, em sua essência, pode ser resumido em dois pontos fundamentais: o arrependimento e a remissão dos pecados. No último estudo bíblico, exploramos a natureza da fé que nos une a Cristo.
Agora, a ordem correta das coisas exige que entendamos os frutos que essa fé produz. A principal pergunta que enfrentaremos é: qual a verdadeira relação entre a fé e o arrependimento? O arrependimento é a causa da fé ou a sua consequência?
Compreender bem este ponto é crucial. Ele nos mostrará como um cristão é justificado unicamente pela fé e, ao mesmo tempo, como a santificação e uma vida de boas obras são inseparáveis dessa justificação.
Descobriremos que ninguém pode abraçar a graça do Evangelho sem se afastar de seus erros e iniciar uma jornada de transformação que dura a vida inteira.
1. O arrependimento é um fruto da fé, não a sua raiz
Um erro comum, tanto no passado quanto hoje, é pensar que o arrependimento deve vir antes da fé. A ideia é que primeiro devemos sentir uma tristeza profunda, mudar nossas atitudes e, só então, Deus nos concederá Sua graça e perdão.
Embora pareça lógico, essa visão inverte a ordem do Evangelho e se baseia em um fundamento instável.
Pense numa árvore. Ela produz frutos porque está viva e suas raízes estão firmemente plantadas em solo fértil, recebendo nutrientes. A árvore não produz frutos para *tentar* se tornar viva; os frutos são a *evidência* da vida que já existe nela.
Da mesma forma, o arrependimento não é algo que fazemos para nos tornarmos dignos da fé; ele é o fruto que brota naturalmente de uma fé genuína que já foi plantada em nosso coração.
Quando João Batista e Jesus pregaram, sua mensagem era: "Arrependei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus" (Mateus 3.2; 4.17).
Eles não disseram: "Arrependei-vos para que, talvez, o Reino se aproxime de vós". A chegada do Reino – a manifestação da graça, da promessa e da salvação de Deus – é a razão e o poder por trás do nosso arrependimento. É como se dissessem: "Visto que a salvação de Deus chegou até vós, voltem-se para Ele!".
Ninguém consegue se arrepender verdadeiramente sem primeiro reconhecer que a salvação vem de Deus e sem provar da Sua graça. O Salmo 130.4 nos dá a chave: "Contigo, porém, está o perdão, para que te temam".
Não é o medo do castigo que produz a verdadeira reverência, mas a experiência do perdão. Ninguém se voltará voluntariamente para obedecer à Lei de Deus se não estiver convencido de que Deus lhe é favorável e que seus esforços para agradá-Lo serão bem recebidos por pura graça.
Aplicação
- Abandone a ideia de "limpar a casa" antes de convidar Deus para entrar. A verdade é que só Ele pode limpar a casa. O convite da fé é para que Ele entre em meio à nossa bagunça. A transformação é obra Dele, não nossa.
- Use a graça como combustível para a mudança. Em vez de se motivar pela culpa ou pelo medo do castigo, medite na imensa graça que você recebeu em Cristo. Deixe que a gratidão pelo perdão imerecido seja a força que o impulsiona a abandonar o pecado.
- Veja o desejo de mudar como um sinal de vida. Se você se sente insatisfeito com seu pecado e deseja ser diferente, isso não é um sinal de que sua fé é fraca, mas sim de que ela está viva! Uma pessoa espiritualmente morta não se incomoda com o pecado.
2. A tristeza que leva à vida é diferente da tristeza que leva à morte
A Escritura, ao falar sobre arrependimento, descreve a experiência de pecadores que são feridos pela consciência do seu pecado e aterrorizados pelo juízo de Deus.
No entanto, nem toda tristeza pelo pecado é o arrependimento que salva. Existe uma distinção crucial entre o que podemos chamar de "arrependimento legal" e "arrependimento evangélico".
O arrependimento legal é a tristeza que foca apenas em Deus como Juiz e Vingador. O pecador reconhece a gravidade do seu erro e teme a ira divina, mas não consegue ver além do castigo. Essa tristeza, sem a esperança da misericórdia, se torna uma porta para o inferno, um desespero que esmaga a alma.
- É a tristeza de Caim, que lamentou que seu castigo era pesado demais para suportar (Gênesis 4.13).
- É a tristeza do rei Saul, que temeu mais a perda de sua honra do que a ofensa a Deus (1 Samuel 15.30).
- É a tristeza de Judas, que, tomado pelo remorso, viu-se sem esperança e se enforcou (Mateus 27.3-5).
Já o arrependimento evangélico é diferente. Nele, o pecador também é ferido pela agulha do pecado, mas essa dor é curada pela confiança na misericórdia de Deus. A pessoa se volta para Cristo como o remédio para sua ferida, o consolo para seu terror e o porto seguro para sua miséria.
- É a tristeza do rei Ezequias, que, ao ouvir a sentença de morte, chorou, mas o fez voltando-se para Deus em confiança (2 Reis 20.2-3).
- É a tristeza dos ninivitas, que se humilharam na esperança de que Deus pudesse se compadecer (Jonas 3.5-9).
- É a tristeza de Pedro, que chorou amargamente após negar a Jesus, mas não deixou de esperar em Sua misericórdia (Mateus 26.75).
Aplicação
- Examine a natureza da sua tristeza pelo pecado. Quando você peca, sua principal preocupação é com as consequências negativas (perda de reputação, problemas nos relacionamentos, castigo divino)? Ou seu coração se entristece genuinamente por ter ofendido um Deus amoroso e gracioso?
- Transforme a tristeza legal em evangélica. Se você se encontra paralisado pelo medo e pela culpa, a saída não é minimizar seu pecado, mas olhar para a cruz de Cristo. É ali que a justiça e a misericórdia de Deus se encontram. Confesse seu pecado, mas faça-o enquanto se agarra à promessa do perdão.
- Lembre-se: o objetivo do arrependimento é a restauração, não a destruição. Deus não nos convence do pecado para nos esmagar, mas para nos atrair de volta para Si. A tristeza segundo Deus "produz arrependimento para a salvação" (2 Coríntios 7.10).
3. O arrependimento é morrer para si mesmo e viver para Deus
Tendo estabelecido a natureza do arrependimento, podemos agora defini-lo de forma mais precisa. Com base nas Escrituras, podemos dizer que o arrependimento é uma verdadeira conversão de nossa vida a Deus, que procede de um sincero e genuíno temor a Ele, e consiste na mortificação de nossa carne e na vivificação do Espírito.
Este processo tem duas partes inseparáveis: a mortificação e a vivificação.
A mortificação é o processo de "matar" nosso velho homem. É mais do que apenas abandonar obras externas ruins; é uma mudança radical na alma. É o que Moisés chamou de "circuncidar o coração" (Deuteronômio 10.16) e os profetas de "criar um coração novo" (Ezequiel 18.31).
Significa despojar-se de nossa natureza corrompida, renunciar ao mundo e à carne, e abnegar nossa própria vontade. É um mandamento difícil, pois exige que sejamos reduzidos a nada para que Deus possa nos refazer.
A vivificação é a consequência dessa morte. É o desejo e o anseio de viver de modo justo e santo, nascendo de novo para uma vida que agrada a Deus.
Quando o Espírito Santo purifica nossa alma, Ele a preenche com novos pensamentos e afetos. Começamos a amar a justiça, a buscar o juízo e a praticar a misericórdia, não por obrigação externa, mas por um novo desejo interno.
Ambas as realidades – mortificação e vivificação – fluem de nossa união com Cristo. Ao participarmos de Sua morte, nosso velho homem é crucificado com Ele (Romanos 6.6).
Ao participarmos de Sua ressurreição, somos ressuscitados com Ele para uma "novidade de vida" (Romanos 6.4). O arrependimento, portanto, é a experiência contínua da nossa participação na morte e ressurreição de Jesus.
Aplicação
- Identifique áreas em sua vida que precisam de "mortificação". Não se trata de autopunição, mas de identificar desejos e atitudes que se opõem a Deus. Pode ser o orgulho, a inveja, a luxúria, a avareza ou a preguiça. Peça ao Espírito Santo que o ajude a "matar" essas coisas pela raiz.
- Busque ativamente a "vivificação". Onde você mortificou o orgulho, cultive a humildade. Onde mortificou a inveja, pratique o contentamento e a celebração do sucesso alheio. A vida cristã não é um vácuo; o que é retirado precisa ser substituído pela virtude correspondente.
- Lembre-se de que este é um processo diário. A mortificação e a vivificação não são um evento único, mas uma luta que durará até a morte. Não desanime com a lentidão do progresso; celebre o fato de que, pela graça de Deus, você está no caminho da transformação.
Conclusão
A vida cristã não é uma fé estática seguida por uma perfeição instantânea. Pelo contrário, ela é uma jornada dinâmica de arrependimento que brota de uma fé viva.
Aprendemos que o verdadeiro arrependimento não é uma condição para receber a graça, mas um belo e inevitável fruto dela. Ele não é uma tristeza desesperadora que nos afasta de Deus, mas uma tristeza santa que nos leva de volta aos Seus braços de misericórdia.
Essa jornada consiste em morrer a cada dia para nosso egoísmo e pecado (mortificação) e viver cada dia mais plenamente para a glória de Deus, em novidade de vida (vivificação). Este processo, embora muitas vezes doloroso, é a evidência mais clara de que fomos unidos a Cristo em Sua morte e ressurreição.
Portanto, se você se sente insatisfeito consigo mesmo, não se desespere. Use essa insatisfação não para se afundar na autopiedade, mas para correr mais rapidamente para Deus.
A vida do cristão é um exercício perpétuo de arrependimento, uma luta constante que prova que estamos vivos.
Que possamos abraçar essa jornada, odiando perfeitamente o pecado e amando cada vez mais a justiça, sabendo que Aquele que começou a boa obra em nós irá completá-la até o dia de Cristo Jesus.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro III - Capítulo III - "Somos regenerados pela fé. Sobre o arrependimento"
Lista de estudos da série
1. A Conexão Secreta: Como a obra do Espírito Santo nos une a Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. O Conhecimento Que Salva: A fé como certeza, não como um salto no escuro – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. O Fruto da Fé: O que é o verdadeiro arrependimento que transforma a vida – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Labirinto da Culpa: A liberdade do perdão em contraste com rituais humanos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. A Afronta à Cruz: Por que a obra de Cristo não precisa de suplementos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. O Mapa da Santidade: Como viver uma vida que realmente honra a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. O Paradoxo da Vida: Por que negar a si mesmo é o caminho para a liberdade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. A Bênção Disfarçada: O propósito divino de carregar a nossa cruz – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Bússola da Alma: Vivendo nesta vida com os olhos fixos na eternidade – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. A Alegria Equilibrada: Como usar os dons de Deus com gratidão e moderação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. O Veredito da Graça: O que significa ser justificado somente pela fé – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Diante do Trono: A única perspectiva que revela nossa necessidade da graça – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Os Dois Pilares da Fé: Como a justificação glorifica a Deus e pacifica a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. A Obra da Graça: O valor das boas obras na vida do crente justificado – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Jogo do Mérito: Desconstruindo a confiança nas obras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. A Graça que Santifica: Por que a justificação gratuita produz uma vida santa – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. A Harmonia da Graça: Como as promessas da Lei se cumprem no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas
18. O Presente da Recompensa: Entendendo a motivação por trás das boas obras – Estudo Bíblico sobre as Institutas
19. O Antídoto Duplo: Como a liberdade cristã nos protege do legalismo e da licença – Estudo Bíblico sobre as Institutas
20. A Chave do Tesouro: Descobrindo o poder e o propósito da oração – Estudo Bíblico sobre as Institutas
21. O Mistério da Escolha: A doutrina da eleição como fonte de humildade e segurança – Estudo Bíblico sobre as Institutas
22. A Soberania que Salva: Como a escolha de Deus se revela na história bíblica – Estudo Bíblico sobre as Institutas
23. A Graça que Incomoda: Respondendo às objeções sobre a eleição e a reprovação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
24. O Selo da Salvação: Como o chamado de Deus confirma Sua escolha eterna – Estudo Bíblico sobre as Institutas
25. A Esperança que Sustenta: Meditando na ressurreição final para viver hoje – Estudo Bíblico sobre as Institutas