Liberdade de escolha. Poucas ideias são tão valorizadas em nossa cultura. Celebramos a liberdade de escolher nossa carreira, nossos relacionamentos, nosso estilo de vida.
Acreditamos que ser humano é, fundamentalmente, ser livre para decidir o próprio destino.
Essa celebração da liberdade muitas vezes entra na igreja. Falamos sobre "decidir por Cristo" ou "fazer uma escolha por Deus", como se a salvação fosse mais uma opção em um cardápio de possibilidades que nossa vontade soberana avalia e seleciona.
No estudo anterior, vimos o espelho quebrado da nossa natureza após a queda de Adão.
A partir de agora, vamos aprofundar as consequências dessa queda, focando em uma das áreas mais debatidas da vida cristã: a vontade humana.
Depois que o pecado entrou no mundo, o que aconteceu com nossa liberdade? Ainda somos capazes de escolher o bem? Somos livres para nos voltarmos para Deus?
Esta é uma questão que precisa de equilíbrio. Se dissermos que o homem não pode fazer nada, corremos o risco de incentivar a preguiça espiritual.
Por outro lado, se atribuirmos poder demais à nossa vontade, roubamos a glória de Deus e nos enchemos de um orgulho perigoso.
A pergunta que nos guiará é: Qual é a verdadeira condição da nossa vontade e do nosso entendimento após a queda, e como essa verdade nos liberta para depender totalmente da graça de Deus?
1. A sabedoria do mundo é loucura para Deus
Se você perguntasse aos grandes filósofos do passado, a maioria pintaria um quadro otimista da natureza humana.
Eles viam a razão como uma rainha nobre, sentada no trono da alma, capaz de guiar o homem para uma vida boa e virtuosa.
A vontade, para eles, era uma serva livre, que podia escolher obedecer à razão ou se entregar aos desejos inferiores.
Eles admitiam que a tarefa não era fácil. Comparavam os desejos desordenados a cavalos selvagens que precisam ser domados.
Contudo, no fim das contas, a crença era a mesma: o poder de viver de forma justa e honesta reside dentro de nós mesmos.
Um pensador romano, Cícero, chegou a dizer que os bens materiais vêm dos deuses, mas a sabedoria e a virtude vêm de nosso próprio mérito.
Infelizmente, essa visão excessivamente otimista influenciou até mesmo alguns dos primeiros pais da igreja.
Homens como Crisóstomo e Jerônimo, com a boa intenção de combater a preguiça espiritual, acabaram atribuindo ao homem mais poder do que ele realmente tem. Eles temiam que, se dissessem que o homem era totalmente incapaz de fazer o bem, as pessoas simplesmente desistiriam de tentar.
Mas a Palavra de Deus nos oferece uma avaliação muito mais radical e realista. Ela nos diz que a sabedoria deste mundo, que confia na capacidade humana, é loucura para Deus.
Confiar em nossa própria força é como se apoiar em uma vara de bambu frágil; no momento em que colocamos peso sobre ela, ela se quebra e nos leva ao chão.
1 Coríntios 1:20-21
Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação.
Aplicação
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Questione a cultura do "eu posso": Vivemos imersos na filosofia do autoaperfeiçoamento, que diz: "Você tem o poder de mudar", "Acredite em você mesmo". Embora a disciplina e o esforço sejam bons, como essa mentalidade pode criar uma barreira para a verdadeira fé, que começa com a confissão: "Eu não posso, mas Deus pode"?
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Avalie suas próprias fontes de confiança: Em que você realmente confia para seu crescimento espiritual? Na sua força de vontade para evitar o pecado? Na sua inteligência para entender a Bíblia? Ou na obra do Espírito Santo para transformar seu coração e iluminar sua mente?
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Pregue o evangelho a si mesmo: Lembre-se diariamente que sua posição diante de Deus não depende de suas habilidades ou de suas boas intenções, mas unicamente da obra perfeita de Cristo. A humildade que glorifica a Deus nasce quando reconhecemos nossa completa incapacidade e a suficiência total Dele.
2. A vontade do homem: livre apenas para pecar
A expressão "livre-arbítrio" é uma das mais perigosas e mal compreendidas da história da igreja. Ao ouvi-la, a maioria das pessoas imagina que o ser humano é um agente neutro, com a capacidade igual de escolher entre o bem e o mal.
Acreditam que a vontade é como um juiz imparcial, que ouve os argumentos da razão e os apelos do desejo, e então toma uma decisão livre.
No entanto, a Bíblia pinta um quadro muito diferente da vontade humana após a queda. A verdade, como explicou Agostinho de Hipona, é que, por causa do pecado, nossa vontade não é livre, mas escrava.
Não somos forçados a pecar contra nossa vontade; pecamos voluntariamente porque nossa própria vontade está acorrentada ao pecado.
Pense nisso desta forma: um lobo é "livre" para agir de acordo com sua natureza de lobo. Ele escolhe caçar ovelhas.
Ninguém o força. Mas ele não é livre para escolher comer grama como uma ovelha, pois isso vai contra sua própria natureza. Da mesma forma, o homem natural, em seu estado caído, é livre para agir de acordo com sua natureza pecaminosa.
Ele escolhe o que agrada a si mesmo, o que satisfaz seu orgulho e seus desejos. Mas ele não é livre para escolher o que agrada a Deus, pois isso vai contra a sua natureza, que é de inimizade contra Deus (Romanos 8:7).
Portanto, quando a Bíblia fala sobre a vontade humana, ela a descreve não como livre, mas como cativa. Nossa liberdade foi perdida no Éden. O que restou foi uma vontade que é livre apenas em uma direção: longe de Deus.
João 8:34
Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é servo do pecado.
Aplicação
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Mude sua perspectiva sobre o pecado: Seu pecado não é apenas uma série de "más escolhas" isoladas. Ele flui de um coração cuja inclinação natural é se rebelar contra Deus. Isso não diminui sua responsabilidade, mas a aprofunda, mostrando que você precisa de mais do que uma nova resolução; você precisa de um novo coração.
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Entenda o milagre da salvação: Se a nossa vontade é escrava do pecado, então a salvação não pode começar com uma "livre escolha" nossa. Ela precisa começar com a ação soberana de Deus, que liberta nossa vontade e nos dá um novo desejo por Ele. Como diz Filipenses 2:13: "Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade."
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Ore com mais urgência na evangelização: Ao compartilhar o evangelho, nosso trabalho não é apenas convencer a mente de alguém, mas orar para que o Espírito Santo realize um milagre: libertar uma vontade cativa e dar vida a um coração espiritualmente morto.
3. A mente humana: brilhante para a terra, cega para o céu
Quando falamos da total incapacidade do homem, precisamos fazer uma distinção importante. A queda não nos transformou em animais ou pedras. Deus, em sua graça comum, preservou na humanidade o que chamamos de "dons naturais". É por isso que, mesmo em um mundo caído, vemos coisas extraordinárias.
A humanidade ainda possui uma incrível capacidade para as "coisas terrenas". Vemos isso no governo e na organização social, nas artes mecânicas e liberais, na ciência e na filosofia.
Quando lemos os escritos de juristas antigos, de médicos e de filósofos pagãos, ficamos maravilhados com a luz da verdade que brilha neles. Essas habilidades são dons do Espírito de Deus, distribuídos para o bem de toda a humanidade.
No entanto, quando se trata das "coisas celestiais", essa mesma mente brilhante é completamente cega.
As "coisas celestiais" são o conhecimento verdadeiro de Deus, a compreensão de Sua vontade para nossa salvação e o caminho para viver uma vida justa diante Dele. Nessas áreas, a mente humana está em total escuridão.
É como um homem perdido em uma noite de tempestade. Um relâmpago ilumina o campo por um instante.
Ele vê o que está ao seu redor, mas a luz é tão breve e a escuridão retorna tão rápido que ele não consegue encontrar o caminho.
Da mesma forma, os filósofos tiveram breves vislumbres da verdade de Deus, mas foram incapazes de chegar ao verdadeiro conhecimento Dele.
Sem a iluminação do Espírito Santo, o homem natural não pode entender as coisas de Deus.
Para ele, são loucura. Mesmo a lei moral escrita em seu coração (Romanos 2) serve não para guiá-lo à salvação, mas para deixá-lo sem desculpa diante do justo juízo de Deus.
1 Coríntios 2:14
Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.
Aplicação
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Valorize a verdade onde quer que a encontre: Não devemos desprezar a ciência, a arte ou a sabedoria humana em áreas terrenas. Podemos aprender com incrédulos e reconhecer que seus talentos são dons da graça comum de Deus. Rejeitar a verdade só porque ela vem de uma fonte não cristã é insultar o Espírito de Deus, que é a fonte de toda a verdade.
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Reconheça sua total dependência para o conhecimento espiritual: Sua capacidade de ler e entender a Bíblia não vem de sua inteligência natural, mas é um milagre contínuo da iluminação do Espírito. Como Davi, devemos orar constantemente: "Desvenda os meus olhos, para que veja as maravilhas da tua lei" (Salmos 119:18).
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Seja humilde em sua teologia: Se o nosso entendimento das coisas de Deus é um presente, não há espaço para orgulho intelectual. Não somos mais inteligentes do que os outros; somos apenas cegos que receberam a visão pela graça.
Conclusão
O retrato que as Escrituras pintam do homem natural é sóbrio e humilhante. Ele não é o herói autônomo e livre que o mundo celebra.
Sua sabedoria sobre Deus é loucura. Sua vontade está acorrentada pelo pecado. Sua mente, embora capaz em assuntos terrenos, é cega para a verdade espiritual que mais importa.
Admitir essa condição não é um convite ao desespero, mas o único portal para a esperança verdadeira. Enquanto acreditarmos que temos alguma força em nós mesmos, continuaremos tentando nos salvar.
É somente quando reconhecemos nossa falência total — nossa incapacidade de pensar, querer ou fazer qualquer bem espiritual — que paramos de lutar e nos rendemos.
É nesse lugar de rendição que a graça de Deus nos encontra. A verdade de nossa escravidão nos faz valorizar imensamente a liberdade que Cristo oferece.
A verdade de nossa cegueira nos faz clamar pela luz do Espírito Santo. A verdade de nossa fraqueza nos leva a depender inteiramente da força que só Deus pode dar.
Que possamos abandonar a perigosa ficção de nossa própria liberdade e poder, e abraçar a verdade libertadora de nossa total dependência de Jesus Cristo.
Nele, e somente Nele, a vontade é libertada, a mente é iluminada e uma vida verdadeiramente justa se torna possível.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro II - Capítulo 2 - "O Homem, Agora Despojado de sua Escolha e Miseravelmente Sujeito a Todo Mal"
Lista de estudos da série
1. O Espelho Quebrado: Redescobrindo quem somos após a queda – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. Vontade Escravizada: Por que não somos livres para escolher a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. Castelo de Areia: Por que nossas melhores obras não podem nos salvar – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Cavaleiro do Coração: Como Deus governa a vontade humana – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. O Espelho da Lei: Por que os mandamentos de Deus nos condenam – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. A Ponte Sobre o Abismo: A necessidade de um Mediador divino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. A Sombra e a Realidade: Como a Lei do Antigo Testamento apontava para Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. O Retrato do Caráter de Deus: Uma exploração profunda dos Dez Mandamentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Alvorada da Salvação: Como Cristo foi revelado no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. O Mesmo Retrato: A unidade fundamental do Antigo e Novo Testamento – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. A Melodia da Redenção: As gloriosas diferenças entre os Testamentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Deus Conosco: Por que o Mediador precisava ser Deus e Homem – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Carne da Nossa Carne: A importância da verdadeira humanidade de Jesus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. O Mistério da União: Como as duas naturezas se unem em Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Salvador Completo: Os três ofícios de Cristo como Profeta, Sacerdote e Rei – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. A Obra da Redenção: A morte, ressurreição e ascensão de Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. O Mérito da Graça: Como a obra de Cristo satisfez a justiça de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas