O Mesmo Retrato: A unidade fundamental do Antigo e Novo Testamento – Estudo Bíblico sobre as Institutas

Imagine duas pessoas olhando para o mesmo retrato. Uma delas o vê através de um vidro fosco e de longe, em um quarto com pouca luz.

Ela consegue distinguir as formas gerais, as cores principais e a intenção do artista, mas muitos detalhes se perdem. 

A outra pessoa vê o mesmo retrato de perto, com uma iluminação clara e sem nenhum vidro embaçado. Ela vê cada pincelada, cada nuance de cor, cada expressão com clareza cristalina.

Ambas viram o mesmo retrato, mas a experiência e a clareza foram completamente diferentes. Essa imagem nos ajuda a entender a semelhança e a diferença entre o Antigo e o Novo Testamento. 

Ao longo da história, alguns, como o antigo herege Marcião, ensinaram que o Deus do Antigo Testamento era diferente do Deus do Novo Testamento, como se fossem dois retratos distintos.

Outros, como alguns anabatistas radicais, trataram o povo de Israel com desprezo, como se fossem apenas um povo terreno, sem nenhuma esperança celestial.

No entanto, a Bíblia nos mostra uma história unificada, um único plano de salvação revelado em diferentes estações. 

O Antigo e o Novo Testamento não são dois pactos diferentes, mas duas administrações do mesmo Pacto da Graça. 

A pergunta que nos guiará é: quais são as semelhanças fundamentais que unem os dois testamentos e quais são as diferenças que destacam a glória superior da Nova Aliança?

1. O pacto é o mesmo em sua essência e substância

Apesar das diferenças na forma como foram administrados, o pacto de Deus com os patriarcas e o pacto que temos hoje são fundamentalmente o mesmo. 

Eles compartilham a mesma verdade e substância, diferindo apenas na dispensação ou no modo de revelação. Podemos resumir a unidade do pacto em três pontos principais:

A. A Esperança da Imortalidade. A meta final do pacto nunca foi a prosperidade terrena. Embora Deus tenha prometido bênçãos físicas a Israel, o alvo sempre foi a esperança da vida eterna. As promessas do Evangelho não nos fixam nos prazeres desta vida, mas nos elevam à esperança da imortalidade. 

Da mesma forma, os patriarcas foram adotados por Deus, não para desfrutarem de delícias terrenas como animais, mas para receberem a promessa da vida futura, tanto na Lei quanto nos profetas.

B. A Salvação Gratuita. O pacto pelo qual os santos do Antigo Testamento foram unidos a Deus nunca se baseou em seus méritos. Sua única razão foi a misericórdia de Deus. A pregação do Evangelho não anuncia nada de novo a esse respeito; apenas declara que os pecadores são justificados pela clemência paterna de Deus, sem qualquer merecimento próprio.

C. Cristo como o Mediador. Os patriarcas tiveram e conheceram a Cristo como Mediador, através do qual foram reconciliados com Deus e feitos participantes de Suas promessas. O Evangelho não tem outro fundamento senão Cristo. Como poderíamos separar os israelitas de Cristo, quando a aliança do Evangelho, que se baseia Nele, foi estabelecida com eles?

Portanto, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, a salvação é pela graça, através da fé, em Cristo, para a glória de uma vida eterna.

Aplicação

  • Aprenda com a fé dos antigos: As histórias de Abraão, Moisés e Davi não são apenas contos de um povo distante. Eles são nossos irmãos e irmãs na fé, unidos a nós pelo mesmo pacto e Mediador. Suas lutas, dúvidas e confiança em Deus são exemplos poderosos para a nossa caminhada hoje.

  • Rejeite o antissemitismo teológico: Infelizmente, a história da igreja está manchada pelo desprezo ao povo judeu. Compreender que eles foram os portadores originais do mesmo pacto que nós recebemos deve gerar humildade e gratidão, e não arrogância.

  • Adore a um Deus fiel: A unidade da Bíblia revela um Deus que é constante em Seus propósitos. A salvação em Cristo não foi um plano B; foi a promessa que Ele manteve fielmente desde Gênesis até Apocalipse. Essa fidelidade deve ser a base da nossa confiança Nele.

2. A vida dos patriarcas prova sua esperança celestial

Se a esperança dos santos do Antigo Testamento fosse limitada a esta vida, eles seriam os homens mais miseráveis do mundo. 

Sua experiência terrena não foi de prosperidade e paz, mas de peregrinação, sofrimento e exílio. Suas vidas foram um exercício constante que os ensinou a olhar para uma pátria melhor, a celestial.

Abraão, o pai da fé, passou sua vida como um estrangeiro em uma terra que lhe foi prometida, mas da qual ele nunca tomou posse, exceto por um túmulo. Ele habitou em tendas, "porque esperava a cidade que tem fundamentos, da qual o arquiteto e construtor é Deus" (Hebreus 11:10). Sua vida foi marcada por fome, perigo e tristezas familiares.

Jacó, ao se apresentar ao Faraó, resumiu sua vida dizendo: "Os dias dos anos da minha peregrinação são... poucos e maus" (Gênesis 47:9). Ele enfrentou o engano, a perda, o luto e a traição. Como ele poderia dizer isso se sua esperança estivesse apenas nas coisas terrenas?

Davi, embora fosse rei, escreveu repetidamente sobre a vaidade da vida humana. "Certamente, todo homem, por mais firme que esteja, é totalmente vaidade" (Salmo 39:5). Ele via a si mesmo como "estrangeiro" e "peregrino" na terra, e sua única esperança estava no Senhor (Salmo 39:7,12).

Todos esses santos morreram "na fé, sem terem recebido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e crendo-as, e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra" (Hebreus 11:13). 

Eles entendiam que a promessa de herança apontava para algo muito maior do que a terra de Canaã. Sua esperança não estava em um reino temporal, mas no reino celestial.

Aplicação

  • Abrace sua identidade de peregrino: Assim como os patriarcas, você é um estrangeiro nesta terra. Este mundo não é seu lar definitivo. Essa perspectiva o liberta da tirania das circunstâncias. Quer você enfrente prosperidade ou sofrimento, sua verdadeira alegria e esperança estão firmadas em sua pátria celestial.

  • Encontre esperança no sofrimento: Se patriarcas como Abraão e Jacó, que receberam promessas terrenas, suportaram tantas provações, nós, que temos uma revelação ainda mais clara da glória vindoura, não devemos nos desesperar em nossas aflições. Elas servem para nos desapegar deste mundo e nos fazer ansiar pelo nosso lar.

  • Aprenda a ver além do visível: Os patriarcas não podiam ver o céu, mas o "contemplavam pela fé". A vida cristã exige que fixemos nossos corações naquilo que está oculto aos nossos olhos físicos. Você está investindo mais no seu breve tempo na terra ou no seu tesouro na eternidade?

3. A palavra e os sacramentos são os mesmos

A unidade do pacto também é vista na forma como Deus se relacionou com Seu povo. Ele sempre os vivificou por meio de Sua Palavra e selou Suas promessas com sacramentos.

A Palavra Vivificadora. Pedro nos diz que a Palavra de Deus é uma "semente incorruptível" que gera vida (1 Pedro 1:23). Essa não é uma verdade exclusiva do Novo Testamento. Os patriarcas foram unidos a Deus através da iluminação de Sua Palavra. 

Ela foi para eles uma entrada no reino imortal, uma participação na própria vida de Deus. O pacto fundamental sempre foi: "Eu serei vosso Deus, e vós sereis meu povo" (Levítico 26:12) — uma promessa que contém em si a vida, a salvação e a plenitude da bem-aventurança.

Os Sacramentos Espirituais. O apóstolo Paulo, para alertar os coríntios contra a falsa segurança em seus sacramentos, faz uma comparação surpreendente. Ele diz que os israelitas "foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar" e que "todos comeram de um mesmo manjar espiritual, e beberam todos de uma mesma bebida espiritual; porque bebiam da pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo" (1 Coríntios 10:2-4). 

Paulo deixa claro que os sacramentos do Antigo Testamento não eram apenas cerimônias carnais, mas símbolos espirituais que apontavam para a mesma realidade que os nossos: Cristo.

Claro, há uma diferença. Cristo disse que os judeus "comeram o maná no deserto e morreram", mas aquele que come o Pão da Vida "viverá para sempre" (João 6:49, 51). Cristo não está contradizendo Paulo, mas se dirigindo a uma audiência que via o maná apenas como alimento físico. Ele eleva a conversa para mostrar que Ele é o cumprimento espiritual infinitamente superior daquilo que o maná apenas prefigurava.

Aplicação

  • Confie no poder da Palavra: A mesma Palavra que sustentou a fé de Abraão é a que sustenta a sua hoje. Ela não é apenas um livro de informações, mas um instrumento vivo pelo qual o Espírito Santo gera e nutre a vida espiritual em você.

  • Valorize os sacramentos: O Batismo e a Ceia do Senhor não são rituais vazios. Assim como os sacramentos do Antigo Testamento, eles são sinais e selos visíveis da graça invisível de Deus. Eles nos unem a Cristo e nos confirmam nas promessas do pacto.

  • Procure Cristo em todos os lugares: Cristo não é encontrado apenas no Novo Testamento. Ele é a "pedra" que saciou a sede espiritual de Israel no deserto. Ele é a substância de todos os símbolos. Toda a Bíblia, do começo ao fim, é sobre Ele.

Conclusão

Concluímos, com total segurança, que o Antigo Testamento, ou o pacto que o Senhor fez com o povo de Israel, não se limitava a coisas terrenas. 

Pelo contrário, continha em si a promessa de uma vida espiritual e eterna, e essa esperança estava impressa nos corações de todos os que verdadeiramente pertenciam ao pacto.

Eles e nós compartilhamos da mesma herança, da mesma salvação, do mesmo Mediador. Eles viram o retrato de Cristo através de um vidro fosco, com a luz do amanhecer.

Nós o vemos face a face, com a luz clara do meio-dia. A substância é a mesma, mas a clareza é incomparavelmente maior.

Que esta verdade nos encha de humildade, ao reconhecer que somos parte de uma longa linhagem de fé. 

E que ela nos encha de gratidão, ao celebrar o privilégio de viver sob a plena luz do Evangelho.

Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro II - Capítulo 10 - "A Semelhança entre o Antigo e o Novo Testamento"


Lista de estudos da série

1. O Espelho Quebrado: Redescobrindo quem somos após a queda – Estudo Bíblico sobre as Institutas

2. Vontade Escravizada: Por que não somos livres para escolher a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas

3. Castelo de Areia: Por que nossas melhores obras não podem nos salvar – Estudo Bíblico sobre as Institutas

4. O Cavaleiro do Coração: Como Deus governa a vontade humana – Estudo Bíblico sobre as Institutas

5. O Espelho da Lei: Por que os mandamentos de Deus nos condenam – Estudo Bíblico sobre as Institutas

6. A Ponte Sobre o Abismo: A necessidade de um Mediador divino – Estudo Bíblico sobre as Institutas

7. A Sombra e a Realidade: Como a Lei do Antigo Testamento apontava para Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

8. O Retrato do Caráter de Deus: Uma exploração profunda dos Dez Mandamentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

9. A Alvorada da Salvação: Como Cristo foi revelado no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas

10. O Mesmo Retrato: A unidade fundamental do Antigo e Novo Testamento – Estudo Bíblico sobre as Institutas

11. A Melodia da Redenção: As gloriosas diferenças entre os Testamentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

12. Deus Conosco: Por que o Mediador precisava ser Deus e Homem – Estudo Bíblico sobre as Institutas

13. Carne da Nossa Carne: A importância da verdadeira humanidade de Jesus – Estudo Bíblico sobre as Institutas

14. O Mistério da União: Como as duas naturezas se unem em Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

15. O Salvador Completo: Os três ofícios de Cristo como Profeta, Sacerdote e Rei – Estudo Bíblico sobre as Institutas

16. A Obra da Redenção: A morte, ressurreição e ascensão de Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

17. O Mérito da Graça: Como a obra de Cristo satisfez a justiça de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas

Semeando Vida

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