Todos nós conhecemos bem a luta interna. Traçamos metas, fazemos resoluções e prometemos a nós mesmos e a Deus que, desta vez, será diferente. Queremos ser mais pacientes, mais generosos, mais disciplinados.
No entanto, vez após vez, nos encontramos fazendo exatamente aquilo que não queríamos e deixando de fazer o bem que desejávamos.
Essa experiência universal levanta objeções sérias quando falamos sobre a escravidão da vontade humana ao pecado.
"Se eu sou incapaz de fazer o bem, por que Deus me manda ser perfeito?", alguém pode perguntar. "Se eu não sou verdadeiramente livre, por que sou culpado quando peco? E por que Deus me exorta a me arrepender e a crer?"
Essas não são perguntas novas; são as mesmas objeções que a igreja tem enfrentado ao longo dos séculos.
Elas parecem lógicas e nascem de uma sincera busca por entender a justiça de Deus. No estudo de hoje, vamos enfrentar essas objeções de frente, usando as próprias Escrituras para desatar esses nós.
A pergunta que nos guiará é: Como podemos entender os mandamentos, as promessas e as repreensões de Deus de uma forma que, em vez de provar nossa liberdade, revele ainda mais profundamente nossa total dependência de Sua graça?
1. Pecamos por escolha, mesmo sem ter a escolha
A primeira e mais comum objeção é esta: "Se o pecado é uma necessidade da nossa natureza, então ele não é mais pecado. E se ele é voluntário, então pode ser evitado". Parece um argumento sem saída. Se somos forçados, não somos culpados. Se escolhemos, somos livres.
Para resolver isso, precisamos entender a diferença crucial entre coação e necessidade. Coação é ser forçado a fazer algo contra a sua vontade por uma força externa. Se um ladrão aponta uma arma para sua cabeça e o força a dirigir o carro de fuga, você não é culpado, pois agiu sob coação.
Necessidade, no entanto, é agir de acordo com a sua própria natureza, mesmo que essa natureza não possa agir de outra forma. Deus, por exemplo, é bom por necessidade. É impossível para Ele ser mau, pois isso violaria Sua própria natureza.
Mesmo assim, Sua bondade é perfeitamente voluntária e digna de louvor. Da mesma forma, o diabo é mau por necessidade. Após sua queda, é impossível para ele fazer o bem. Mesmo assim, ele peca voluntariamente e é plenamente culpado.
A condição do homem caído é semelhante. Por causa da corrupção de nossa natureza, não podemos deixar de pecar. É uma necessidade.
Mas não pecamos por coação. Ninguém nos força. Pecamos voluntariamente, pois seguimos os desejos de um coração que, por natureza, ama as trevas.
Nossa miséria, como disse Bernardo de Claraval, é que nossa necessidade é voluntária. Estamos acorrentados, e amamos nossas correntes.
Romanos 6:20
Porque, quando éreis escravos do pecado, estáveis livres da justiça.
Aplicação
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Assuma a responsabilidade pelo seu pecado: Pare de usar a desculpa "Eu não consegui evitar". Embora seja verdade que sua natureza é fraca, você peca porque uma parte de você o deseja. A confissão honesta não diz "Eu fui forçado", mas "Meu coração é inclinado ao mal, e eu voluntariamente cedi a ele. Senhor, tem misericórdia de mim."
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Entenda a verdadeira liberdade: A liberdade cristã não é a capacidade de escolher entre o bem e o mal. A verdadeira liberdade é ser liberto da necessidade de pecar para que você possa voluntariamente e alegremente escolher o bem. É isso que o Espírito Santo faz em nós.
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Agradeça pela graça dos "dons": Se as boas obras fossem fruto do nosso "livre-arbítrio", elas seriam nossos méritos. Mas como são fruto da graça de Deus operando em nós, são Seus dons. Agostinho disse que Deus "coroa seus próprios dons, não nossos méritos". Isso nos livra do fardo de ter que merecer o favor de Deus.
2. Os mandamentos de Deus são um espelho, não uma escada
A segunda objeção se baseia nos inúmeros mandamentos da Bíblia. Argumenta-se que Deus não se zombaria de nós ordenando algo que somos absolutamente incapazes de fazer.
Se Ele diz "Convertei-vos a mim" ou "Guardai os meus mandamentos", isso deve significar que temos em nós o poder para nos converter e obedecer.
Essa lógica, porém, ignora o propósito principal da Lei de Deus. A Lei não foi dada como uma escada que poderíamos subir com nosso próprio esforço para alcançar a Deus. Pelo contrário, a Lei foi dada como um espelho perfeito. E qual é a função de um espelho? Mostrar a sujeira.
O apóstolo Paulo é muito claro sobre isso. Ele diz que "pela lei vem o pleno conhecimento do pecado" (Romanos 3:20) e que a lei "foi acrescentada por causa das transgressões" (Gálatas 3:19).
Os mandamentos de Deus nos mostram o padrão perfeito de Sua santidade. Ao nos compararmos com esse padrão, não vemos nossa capacidade, mas nossa total incapacidade. A Lei não nos justifica; ela nos cala e nos mostra o quanto precisamos de um Salvador.
Além disso, para o crente, as exortações e os mandamentos têm um propósito diferente. Eles não são mais apenas um espelho que acusa, mas se tornam o instrumento que o Espírito Santo usa para nos despertar, nos ensinar e nos guiar.
Deus opera em nós de duas maneiras: por dentro, com Seu Espírito, e por fora, com Sua Palavra. A Palavra nos mostra o caminho, e o Espírito nos dá o desejo e a força para andar nele.
Gálatas 3:24
De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que, pela fé, fôssemos justificados.
Aplicação
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Reaja corretamente à Lei: Quando você ler um mandamento como "Amai os vossos inimigos", qual é sua primeira reação? Sentir-se culpado e desistir? Ou orar: "Senhor, este é o Teu padrão, e eu sou incapaz de alcançá-lo. Por favor, pela Tua graça, opera este amor em meu coração"?
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Use as exortações como combustível para a oração: Toda exortação na Bíblia é uma oportunidade de clamar pela graça de Deus. Se a Bíblia diz "Não apagueis o Espírito", ore: "Espírito Santo, por favor, não permita que a minha negligência apague o Teu fogo em mim".
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Entenda o valor da pregação: A pregação da Palavra é essencial. Para os incrédulos, ela serve para expor o pecado e deixá-los sem desculpa. Para os crentes, ela é o meio pelo qual Deus nos molda e nos fortalece. Ela nunca é inútil.
3. As promessas de Deus revelam a nossa pobreza
A terceira objeção se apoia nas promessas condicionais da Bíblia. Deus diz: "Se quereis e me ouvis, comereis o bem desta terra" (Isaías 1:19) ou "Buscai o bem e não o mal, para que vivais" (Amós 5:14).
O argumento é que seria cruel da parte de Deus oferecer bênçãos sob condições que não podemos cumprir.
Mais uma vez, essa visão falha em entender o propósito divino. As promessas condicionais, assim como os mandamentos, têm um duplo objetivo. Para os incrédulos, elas demonstram a justiça de Deus.
Mostram que as bênçãos estão reservadas para aqueles que O honram, e que eles, por sua contínua rebelião, são justamente excluídos delas. As promessas os deixam sem desculpa.
Para os crentes, as promessas servem para nos atrair com doçura. Elas despertam nosso coração preguiçoso para amar a justiça e buscar a graça de Deus com mais fervor.
Quando lemos "Se me ouvis", não confiamos em nossa capacidade de ouvir, mas clamamos Àquele que abre os ouvidos dos surdos. A condição da promessa se torna o conteúdo de nossa oração.
Um dos versos mais mal interpretados neste debate é Deuteronômio 30:11-14, onde Moisés diz que o mandamento "não está longe de ti... mas mui perto de ti, na tua boca e no teu coração, para o cumprires". Alguns usam isso para provar que a obediência é fácil e está ao nosso alcance.
No entanto, o apóstolo Paulo, em Romanos 10, nos diz que Moisés aqui não está falando da Lei, mas da "justiça que é pela fé". A Palavra está perto de nós não porque somos capazes de obedecê-la, mas porque Cristo a cumpriu por nós, e a promessa é recebida pela fé, que é um dom de Deus.
Aplicação
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Transforme promessas em orações: Ao ler uma promessa condicional, transforme a condição em um pedido. "Senhor, Tu prometes abençoar se eu Te obedecer. Por favor, dá-me um coração obediente para que eu possa desfrutar da Tua bênção."
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Rejeite a teologia do mérito: A ideia de que merecemos as bênçãos de Deus por cumprirmos nossa parte do acordo está no cerne do legalismo. Lembre-se que a perseverança na fé não é o nosso mérito, mas um dom gratuito de Deus.
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Descanse no Evangelho: A grande promessa de Deus não é que Ele nos ajudará a cumprir a Lei, mas que Cristo já a cumpriu em nosso lugar. A salvação não depende do nosso "querer" ou "correr", mas unicamente da misericórdia de Deus (Romanos 9:16).
Conclusão
As objeções em favor do livre-arbítrio parecem fortes porque apelam à nossa experiência e ao nosso orgulho. Mas, quando examinadas à luz de toda a Escritura, elas se desfazem. A verdade é que pecamos voluntariamente, mesmo sendo escravos do pecado, e por isso somos plenamente responsáveis.
Os mandamentos e as promessas de Deus não nos foram dados para provar a força da nossa vontade, mas para revelar a sua fraqueza. Eles são o diagnóstico que nos faz ver a gravidade da nossa doença e a nossa desesperada necessidade do Médico Divino.
Deus nos ordena a nos convertermos, e então Ele nos converte. Ele nos manda perseverar, e então Ele nos dá a perseverança. Ele nos ordena a amar, e então Ele derrama Seu amor em nossos corações. O que Ele exige de nós em Sua Lei, Ele nos concede gratuitamente em Sua graça.
Que possamos, portanto, parar de usar a Palavra de Deus como uma arma para defender nosso orgulho e nossa suposta liberdade, e comecemos a usá-la como um convite para nos lançarmos, impotentes e confiantes, nos braços da graça soberana de nosso Deus.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro II - Capítulo 5 - "Respondendo às Objeções Sobre o Livre-Arbítrio"
Lista de estudos da série
1. O Espelho Quebrado: Redescobrindo quem somos após a queda – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. Vontade Escravizada: Por que não somos livres para escolher a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. Castelo de Areia: Por que nossas melhores obras não podem nos salvar – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Cavaleiro do Coração: Como Deus governa a vontade humana – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. O Espelho da Lei: Por que os mandamentos de Deus nos condenam – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. A Ponte Sobre o Abismo: A necessidade de um Mediador divino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. A Sombra e a Realidade: Como a Lei do Antigo Testamento apontava para Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. O Retrato do Caráter de Deus: Uma exploração profunda dos Dez Mandamentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Alvorada da Salvação: Como Cristo foi revelado no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. O Mesmo Retrato: A unidade fundamental do Antigo e Novo Testamento – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. A Melodia da Redenção: As gloriosas diferenças entre os Testamentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Deus Conosco: Por que o Mediador precisava ser Deus e Homem – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Carne da Nossa Carne: A importância da verdadeira humanidade de Jesus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. O Mistério da União: Como as duas naturezas se unem em Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Salvador Completo: Os três ofícios de Cristo como Profeta, Sacerdote e Rei – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. A Obra da Redenção: A morte, ressurreição e ascensão de Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. O Mérito da Graça: Como a obra de Cristo satisfez a justiça de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas