Salvação pela graça. Esta é uma das verdades mais preciosas do evangelho. Celebramos o fato de que somos salvos não por nossas obras, mas pelo favor imerecido de Deus. No entanto, às vezes, em nosso zelo por proteger a gratuidade da salvação, podemos cair em um extremo perigoso.
Alguns, ao ouvir a palavra "mérito" aplicada a Cristo, ficam desconfortáveis. Eles pensam que, se dissermos que Cristo *mereceu* nossa salvação, estamos de alguma forma diminuindo a graça de Deus. Eles preferem ver Jesus apenas como um "instrumento" ou um "canal" da salvação, mas não como seu autor e causa.
Embora essa preocupação venha de um bom lugar, ela pode, sem querer, roubar de Cristo a dignidade de Sua obra e enfraquecer a base da nossa fé.
Como, então, podemos entender o mérito de Cristo de uma forma que exalte, em vez de obscurecer, a pura misericórdia de Deus?
Neste estudo, vamos explorar a relação entre a graça soberana de Deus e a obra meritória de Cristo, descobrindo como essas duas verdades não se opõem, mas trabalham juntas em perfeita harmonia para nos salvar.
1. O mérito de Cristo é fruto da graça de Deus
A primeira coisa que precisamos estabelecer é que, se olharmos para Cristo simplesmente como homem e o colocarmos diante do juízo de Deus, não haveria lugar para mérito.
Nenhum ser humano, por si só, possui uma dignidade capaz de obrigar a Deus. Como disse Agostinho, a própria humanidade que Cristo assumiu foi um ato da graça e da predestinação de Deus, sem qualquer mérito precedente.
O mérito de Cristo não se origina Nele mesmo, isoladamente, mas no decreto eterno de Deus. Foi a pura e graciosa vontade de Deus que O constituiu como Mediador para nos alcançar a salvação.
Portanto, a fonte primária de nossa salvação é a misericórdia de Deus Pai. O mérito de Cristo, então, é uma causa secundária, subordinada a essa misericórdia.
Não há contradição aqui. É uma regra geral que as coisas subalternas não se opõem à causa principal.
Portanto, é perfeitamente possível afirmar duas coisas ao mesmo tempo: que nossa justificação é gratuita, por pura misericórdia de Deus, e que, ao mesmo tempo, ela se dá pela intervenção do mérito de Cristo.
Pense em uma dívida impagável. A misericórdia do credor é a causa principal do perdão. Mas se ele mesmo providencia um fiador que paga a dívida, o pagamento desse fiador se torna a causa secundária. A misericórdia e o pagamento não se opõem; um flui do outro.
Da mesma forma, o amor de Deus (causa principal) O levou a designar Cristo para que, com Sua obediência e sacrifício (causa secundária), Ele aplacasse a ira de Deus e apagasse nossas transgressões.
Aplicação
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Glorifique ao Pai pela obra do Filho: Ao pensar na cruz, não se esqueça de que ela foi, antes de tudo, uma demonstração do amor do Pai. Foi Ele quem "deu o seu Filho unigênito". A cruz não convenceu um Deus relutante a nos amar; ela foi a expressão máxima de um amor que já existia desde a eternidade.
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Rejeite a teologia do mérito humano: O mérito de Cristo se opõe radicalmente a qualquer mérito humano. Nossa salvação não é uma cooperação entre a graça de Deus e nossas boas obras. É 100% graça de Deus, que opera através da obra 100% suficiente de Cristo.
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Encontre segurança na harmonia divina: Sua salvação é duplamente segura. Ela está firmada na misericórdia imutável do Pai e no mérito perfeito do Filho. Não há tensão no plano de Deus; há uma harmonia perfeita que garante sua paz.
2. Cristo não é apenas um instrumento, mas a causa
Cristo é muito mais do que um simples "canal" da graça. Dizer que Ele é apenas uma "causa formal" — ou seja, apenas o meio pelo qual a justiça nos é aplicada — diminui Sua obra. As Escrituras nos mostram que a própria *matéria* da nossa salvação se encontra Nele.
João nos diz que "Deus... enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados" (1 João 4:10). A palavra "propiciação" é poderosa. Significa que a obra de Cristo satisfez a justiça de Deus e aplacou Sua ira. Ele não foi apenas um mensageiro; Ele foi o sacrifício.
Isso nos leva a um mistério profundo. Como vimos no estudo anterior, Deus nos amava com um amor eterno. No entanto, por causa do nosso pecado, Ele era nosso inimigo e juiz.
A cruz é o lugar onde essa tensão se resolve. Através do sacrifício de Cristo, a inimizade é removida, e o amor de Deus pode fluir para nós sem violar Sua justiça.
É por isso que as Escrituras usam uma linguagem tão forte: "Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo" (2 Coríntios 5:19). E "nos fez agradáveis a si no Amado" (Efésios 1:6). Nós, que éramos inimigos, nos tornamos agradáveis por causa da obra do Filho Amado. Cristo não apenas nos entregou um presente; Ele *é* o presente que nos torna aceitáveis.
Aplicação
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Busque sua justiça somente em Cristo: A única razão pela qual você é justo aos olhos de Deus é porque "Aquele que não conheceu pecado, [Deus] o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus" (2 Coríntios 5:21). Sua justiça não está em você; está Nele.
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Aproprie-se da Sua obra: O favor que Cristo conquistou com o Pai é repartido conosco. A graça não é apenas Dele; ela flui Dele para nós. Não há outra forma de receber o amor do Pai senão através da graça adquirida pelo Filho.
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Descanse na obra de propiciação: Quando você se sentir culpado, lembre-se de que a ira de Deus contra o seu pecado já foi aplacada. Cristo é a sua propiciação. Você não precisa mais temer o juízo, pois Ele o suportou em seu lugar.
3. Por Sua obediência, Cristo mereceu o favor para nós
As Escrituras são claras ao afirmar que a obediência de Cristo *mereceu* e *adquiriu* para nós a graça e o favor do Pai.
Paulo estabelece um paralelo direto: "Como, pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim, pela obediência de um, muitos serão feitos justos" (Romanos 5:19).
Assim como a desobediência de Adão nos trouxe condenação, a obediência de Cristo nos trouxe justificação. Sua obediência não apenas nos cobriu; ela nos *adquiriu* um status de justos diante de Deus.
Seu sangue nos purifica (1 João 1:7). Sua morte foi a expiação pelos nossos pecados (Hebreus 9:12).
O Cordeiro de Deus tirou o pecado do mundo (João 1:29). Todas essas expressões mostram que a obra de Cristo não foi apenas um exemplo, mas uma transação legal e eficaz. Ele pagou um preço. Ele satisfez uma dívida.
Quando dizemos que fomos "comprados por bom preço" (1 Coríntios 6:20), estamos afirmando que um resgate foi pago.
Se fomos redimidos pela "sangue precioso de Cristo" (1 Pedro 1:19), isso significa que um preço de valor infinito foi oferecido em nosso lugar. Se alcançamos por Sua graça o que a Lei nos daria por obras, então Sua obediência se torna o nosso mérito.
É importante ressaltar que Cristo não mereceu nada para Si mesmo. Ele, como Filho de Deus, não precisava adquirir nada. Tudo o que Ele fez foi por nós e para nosso benefício.
Ele se humilhou para que fôssemos exaltados. Ele se santificou para que a santidade Dele pudesse ser transferida para nós. Seu foco estava inteiramente em nossa salvação.
Aplicação
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Tenha confiança diante de Deus: Sua confiança não se baseia em seus sentimentos ou em seu desempenho, mas no mérito perfeito de Cristo. Você pode se apresentar diante do tribunal de Deus com segurança, não porque você é digno, mas porque o sacrifício Dele é digno.
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Entenda o significado do sacrifício: Os sacrifícios do Antigo Testamento ensinavam que "sem derramamento de sangue não há remissão". A morte de Cristo cumpriu essa figura, sendo o único sacrifício capaz de realmente purificar a consciência e satisfazer a justiça de Deus.
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Louve a Cristo por Seu amor sacrificial: O fato de que Cristo não buscou nenhuma vantagem para Si mesmo, mas se esqueceu de Si para nos salvar, é a maior demonstração de amor que o universo já conheceu. Que essa verdade o leve a uma adoração e a uma gratidão profundas.
Conclusão
A salvação que recebemos é, ao mesmo tempo, um ato da mais pura misericórdia de Deus e o resultado do mérito perfeito de Cristo. Não há contradição nisso. O amor gratuito do Pai O levou a designar o Filho. A obediência amorosa do Filho O levou a merecer para nós o favor do Pai.
Cristo não foi apenas um canal passivo. Ele foi o autor, o guia, o capitão e a substância da nossa salvação. Em Sua vida, morte e ressurreição, Ele ativamente conquistou, mereceu e adquiriu para nós o perdão, a justiça e a vida eterna.
Que possamos, portanto, descansar plenamente nesta dupla verdade. Nossa salvação é gratuita para nós, mas custou um preço infinito ao nosso Salvador. Que essa compreensão nos livre de todo o orgulho em nossas próprias obras e nos encha de uma fé inabalável na obra consumada de Jesus Cristo em nosso favor.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro II - Capítulo 17 - "Jesus Cristo nos Mereceu a Graça de Deus e a Salvação"
Lista de estudos da série
1. O Espelho Quebrado: Redescobrindo quem somos após a queda – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. Vontade Escravizada: Por que não somos livres para escolher a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. Castelo de Areia: Por que nossas melhores obras não podem nos salvar – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Cavaleiro do Coração: Como Deus governa a vontade humana – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. O Espelho da Lei: Por que os mandamentos de Deus nos condenam – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. A Ponte Sobre o Abismo: A necessidade de um Mediador divino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. A Sombra e a Realidade: Como a Lei do Antigo Testamento apontava para Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. O Retrato do Caráter de Deus: Uma exploração profunda dos Dez Mandamentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Alvorada da Salvação: Como Cristo foi revelado no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. O Mesmo Retrato: A unidade fundamental do Antigo e Novo Testamento – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. A Melodia da Redenção: As gloriosas diferenças entre os Testamentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Deus Conosco: Por que o Mediador precisava ser Deus e Homem – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Carne da Nossa Carne: A importância da verdadeira humanidade de Jesus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. O Mistério da União: Como as duas naturezas se unem em Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Salvador Completo: Os três ofícios de Cristo como Profeta, Sacerdote e Rei – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. A Obra da Redenção: A morte, ressurreição e ascensão de Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. O Mérito da Graça: Como a obra de Cristo satisfez a justiça de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas