Para muitos cristãos hoje, a Lei do Antigo Testamento parece um universo estranho e distante.
Lemos sobre sacrifícios de animais, rituais de purificação e uma série de regras que parecem complicadas e, às vezes, até sem sentido.
Qual era o propósito de tudo aquilo? Era apenas um fardo pesado que Deus impôs ao Seu povo, ou havia um significado mais profundo?
Muitas vezes, a resposta se divide em dois extremos. Alguns ignoram a Lei completamente, tratando-a como irrelevante para a vida cristã. Outros tentam reviver suas práticas, esquecendo que Cristo já veio.
Mas a Bíblia nos mostra um terceiro caminho, um que vê a Lei não como um fim em si mesma, mas como uma seta gigante apontando para a frente.
No estudo anterior, vimos que, após a queda, a salvação sempre foi encontrada em Cristo, o Mediador.
A partir de agora, vamos explorar como a Lei, dada a Moisés, se encaixa nesse plano. Ela foi um desvio do caminho ou parte essencial dele?
A pergunta que nos guiará é: Como a Lei, tanto em seus rituais quanto em seus mandamentos morais, serviu não para prender o povo de Deus, mas para alimentar a esperança na salvação que um dia viria em Jesus Cristo?
1. Os rituais eram sombras da realidade em Cristo
A Lei que Deus deu através de Moisés era muito mais do que apenas os Dez Mandamentos.
Era um sistema completo de religião, repleto de cerimônias e rituais. Havia sacrifícios de animais, aspersão de sangue e água, e um tabernáculo construído segundo um modelo celestial.
Se olharmos para essas cerimônias isoladamente, sem seu contexto espiritual, elas podem parecer vãs e até bizarras.
Que valor pode haver no cheiro da gordura queimada de um animal para reconciliar alguém com Deus? Como a água ou o sangue poderiam lavar a impureza da alma?
A resposta é que esses rituais nunca tiveram poder em si mesmos. Eles eram figuras, símbolos ou sombras.
Assim como a sombra de uma pessoa nos dá uma ideia de sua forma, mas não é a pessoa real, as cerimônias da Lei apontavam para a realidade substancial que viria em Cristo.
Deus instruiu Moisés a construir tudo "conforme o modelo que te foi mostrado no monte" (Êxodo 25:40), indicando que a adoração terrena era uma cópia de uma realidade celestial e espiritual.
Sem Cristo como a chave de interpretação, a adoração do Antigo Testamento se torna um enigma.
Por que os israelitas, que eram escravos do pecado por natureza, poderiam ser chamados de "reino de sacerdotes" (Êxodo 19:6)? Isso só é possível se eles fossem consagrados pela santidade de um Sacerdote-Cabeça que ainda estava por vir.
Cada sacrifício que não podia purificar verdadeiramente o pecado sussurrava a necessidade de um sacrifício perfeito. Cada sacerdote imperfeito apontava para um Sumo Sacerdote eterno.
Como o autor de Hebreus explica detalhadamente, as cerimônias não tinham valor em si mesmas até que se chegasse a Cristo. Ele é o cumprimento, o fim e a substância de todas elas.
Aplicação
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Aprecie a riqueza do Antigo Testamento: Não descarte os livros de Levítico ou Números como irrelevantes. Leia-os com "óculos de Cristo". Em cada sacrifício, veja uma prefiguração da cruz. Em cada sacerdote, veja um tipo do nosso grande Sumo Sacerdote. Isso trará uma nova profundidade à sua compreensão do evangelho.
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Firme sua fé na substância, não na sombra: O evangelho nos oferece uma graça muito maior do que a dos santos do Antigo Testamento. Eles viam Cristo à distância, através de sombras. Nós O vemos face a face na Palavra. Agradeça a Deus por viver nesta era de clareza e cumprimento.
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Cuidado com o ritualismo vazio: Nossa natureza humana ainda é tentada a confiar em rituais externos (ir à igreja, orar, ler a Bíblia) em vez de uma fé real em Cristo. Lembre-se que, sem um coração voltado para Jesus, nossas práticas religiosas podem se tornar tão vazias quanto os sacrifícios que Deus rejeitou através dos profetas.
2. A lei moral nos torna indesculpáveis
Mas e os Dez Mandamentos, a lei moral? Qual o seu propósito? Se é verdade que a Lei nos mostra a justiça perfeita, então, teoricamente, uma obediência perfeita a ela resultaria em vida eterna. Moisés apresentou a Lei ao povo como uma escolha entre "a vida e o bem, e a morte e o mal" (Deuteronômio 30:15).
O problema é que essa promessa de vida está fora do nosso alcance. A doutrina da Lei, como um bisturi preciso, revela a nossa verdadeira condição. Ela excede em muito a nossa capacidade, e o único resultado para nós é o desespero.
Olhamos para o padrão perfeito e vemos não a vida, mas a morte. A Lei, que promete vida aos obedientes, pronuncia uma maldição sobre todos nós, pois nenhum de nós pode obedecer perfeitamente.
Então, a Lei foi dada em vão? De forma alguma. Embora as promessas da Lei dependam de uma obediência perfeita que não podemos oferecer, elas não são inúteis.
Ao nos mostrar nossa completa incapacidade de alcançar a justiça por nós mesmos, elas nos preparam para receber a justiça que nos é oferecida gratuitamente em Cristo. A Lei nos esvazia de nossa autoconfiança para que possamos ser preenchidos pela graça.
A impossibilidade de cumprir a Lei não é uma opinião, mas um fato ensinado em toda a Escritura. Salomão declarou: "não há homem que não peque" (1 Reis 8:46).
E Paulo afirma: "Maldito todo aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas no livro da lei, para fazê-las" (Gálatas 3:10). Visto que ninguém permanece em todas as coisas, todos estão sob essa maldição.
Aplicação
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Deixe a Lei fazer seu trabalho em você: Use os Dez Mandamentos como um espelho para sua alma. Em vez de se comparar com outras pessoas, compare-se com o padrão perfeito de Deus. Isso irá humilhá-lo e levá-lo de volta à cruz, grato pelo perdão que você tem em Cristo.
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Entenda a beleza da justificação pela fé: A doutrina da justificação pela fé não é um plano B. É a única solução para o dilema que a Lei apresenta. A Lei exige uma justiça que não temos. O Evangelho oferece a justiça de Cristo como um dom gratuito, a ser recebido pela fé.
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Viva na liberdade do perdão: Em Cristo, a "imperfeita obediência" do crente é aceita por Deus como se fosse perfeita. Deus, por Sua liberalidade, nos faz participantes das promessas da Lei, não porque a cumprimos, mas porque Cristo a cumpriu por nós.
3. A lei tem três usos principais
Para entendermos melhor toda essa questão, podemos resumir o ofício e o uso da Lei moral em três partes principais.
O primeiro uso é revelar nossa impotência (ser um espelho). Como vimos, a Lei expõe nosso pecado, nossa fraqueza e nossa culpa. Ela destrói nosso orgulho e nossa autoconfiança, nos condenando e nos mostrando que estamos totalmente perdidos.
Para o homem que ainda não foi regenerado, este é o primeiro e principal propósito da Lei: ela nos convence do pecado e nos leva ao desespero de nós mesmos, preparando o caminho para a graça.
O segundo uso é reter o mal na sociedade (ser um freio). A Lei, com suas ameaças de juízo, serve como um freio para aqueles que ainda não amam a justiça. Pelo medo do castigo, muitas pessoas são impedidas de cometer atos maus que, de outra forma, cometeriam. Isso não as torna justas diante de Deus, pois seus corações ainda são rebeldes.
No entanto, essa justiça "forçada" é necessária para a ordem e a paz da sociedade. Para os futuros crentes, este uso da Lei pode servir como uma preparação, acostumando-os ao jugo do Senhor antes que seus corações sejam transformados.
O terceiro uso é revelar a vontade de Deus aos crentes (ser um guia). Este é o principal uso da Lei para aqueles cujos corações já foram regenerados pelo Espírito. Para os crentes, a Lei não é mais um ministro de morte que condena, mas um guia amoroso que nos ensina a vontade do Pai.
Embora tenhamos o Espírito nos guiando, ainda precisamos da instrução da Lei para aprender cada dia mais sobre como agradar a Deus.
A Lei se torna como um chicote para nossa carne preguiçosa, nos exortando e nos estimulando à obediência, e nos fortalecendo para nos afastarmos do pecado.
Aplicação
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Identifique como a Lei está agindo em sua vida: Você está usando a Lei para se justificar (o que leva ao orgulho)? Ou você está permitindo que ela o leve a Cristo (o que leva à humildade)? Para o crente, você está vendo a Lei como um fardo ou como a doce instrução de um Pai amoroso?
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Lute contra a ilegalidade (antinomismo): Alguns, para defender a liberdade da graça, rejeitam completamente a Lei moral. Isso é um erro perigoso. Em Cristo, estamos livres da maldição da Lei, mas não da sua obediência. Ela permanece como o padrão perfeito e imutável de justiça para o povo de Deus.
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Ame a Lei de Deus: O salmista declara: "Oh! quanto amo a tua lei! É a minha meditação em todo o dia" (Salmo 119:97). Isso é possível porque ele via na Lei não apenas mandamentos, mas o próprio Mediador. Sem Cristo, a Lei é amarga. Com Cristo, ela se torna doce, pois é o caminho para agradar Aquele que nos amou primeiro.
Conclusão
A Lei de Moisés nunca teve a intenção de ser um caminho alternativo para a salvação. Desde o início, ela foi projetada para ser um pedagogo, um tutor que nos guiaria a Cristo.
Suas cerimônias eram as sombras que apontavam para a realidade Nele. Seus mandamentos morais eram o espelho que nos mostrava nossa necessidade desesperada Dele.
Em Cristo, o propósito das cerimônias foi cumprido, e seu uso cessou. Nele, a maldição da lei moral foi removida.
Mas a Lei como um guia para a santidade permanece. Para o crente, ela não é mais uma fonte de terror, mas uma lâmpada para os pés e luz para o caminho.
Que possamos, portanto, ter uma visão equilibrada e bíblica da Lei. Que ela nos humilhe, nos restrinja e, acima de tudo, nos guie a um amor e a uma obediência cada vez maiores ao nosso Senhor, que não veio para abolir a Lei, mas para cumpri-la perfeitamente em nosso lugar.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro II - Capítulo 7 - "A Lei foi dada, não para reter o povo antigo em si mesma, mas para alimentar a esperança da salvação em Jesus Cristo, até que Ele viesse"
Lista de estudos da série
1. O Espelho Quebrado: Redescobrindo quem somos após a queda – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. Vontade Escravizada: Por que não somos livres para escolher a Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. Castelo de Areia: Por que nossas melhores obras não podem nos salvar – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Cavaleiro do Coração: Como Deus governa a vontade humana – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. O Espelho da Lei: Por que os mandamentos de Deus nos condenam – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. A Ponte Sobre o Abismo: A necessidade de um Mediador divino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. A Sombra e a Realidade: Como a Lei do Antigo Testamento apontava para Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. O Retrato do Caráter de Deus: Uma exploração profunda dos Dez Mandamentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Alvorada da Salvação: Como Cristo foi revelado no Evangelho – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. O Mesmo Retrato: A unidade fundamental do Antigo e Novo Testamento – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. A Melodia da Redenção: As gloriosas diferenças entre os Testamentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Deus Conosco: Por que o Mediador precisava ser Deus e Homem – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Carne da Nossa Carne: A importância da verdadeira humanidade de Jesus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. O Mistério da União: Como as duas naturezas se unem em Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Salvador Completo: Os três ofícios de Cristo como Profeta, Sacerdote e Rei – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. A Obra da Redenção: A morte, ressurreição e ascensão de Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. O Mérito da Graça: Como a obra de Cristo satisfez a justiça de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas