Embora a majestade de Deus esteja estampada em toda a criação, nossos corações e mentes são lentos e preguiçosos.
Ficamos tão facilmente distraídos pelas maravilhas do mundo que nos esquecemos do Artista por trás da obra. A filosofia, com suas ideias de uma “alma do mundo”, nos oferece apenas uma sombra vaga e impessoal.
Por essa razão, a revelação de Deus na natureza, embora nos deixe sem desculpa, não é suficiente para nos guiar a um conhecimento íntimo e salvador.
Precisamos de mais. Precisamos que o próprio Criador nos conte a Sua história, que Ele nos forneça o roteiro para entendermos o palco do universo.
É por isso que Deus, em Sua graça, nos deu o relato da criação em Gênesis. Moisés não escreveu uma teoria científica, mas uma história teológica divinamente inspirada.
Seu objetivo não era satisfazer nossa curiosidade sobre os mecanismos do universo, mas revelar o caráter do Criador do universo.
A história da criação é o retrato que Deus pinta de Si mesmo, diferenciando-O de todos os ídolos e falsificações humanas.
Neste estudo, exploraremos como o relato bíblico da criação, com seus detalhes específicos, nos revela quem é o verdadeiro Deus e qual deve ser a nossa resposta a Ele.
1. A Bíblia é o roteiro divino para o palco da criação
O relato da criação em Gênesis começa estabelecendo um detalhe fundamental: o tempo. Ao narrar a obra criadora em uma sucessão de dias, Moisés nos dá um ponto de partida, um começo para a história humana e para todas as coisas.
Este conhecimento é vital, não apenas para destruir as fábulas e mitos de outras culturas, mas para nos ajudar a compreender a eternidade de Deus em contraste com a temporalidade do mundo.
Não devemos nos perturbar com as zombarias daqueles que perguntam, com desdém, “o que Deus estava fazendo em todo o tempo ocioso antes da criação?”. Tentar subir tão alto com nosso entendimento finito é uma receita para a frustração.
Um antigo sábio, ao ser confrontado com essa pergunta zombeteira, respondeu que Deus estava “construindo o inferno para os curiosos”.
Essa resposta, embora severa, nos lembra de que devemos refrear nosso apetite por especulações que vão além do que Deus quis nos revelar.
Deus, em Sua sabedoria, nos deu limites para o nosso conhecimento, para testar a modéstia da nossa fé.
Assim como os olhos enfraquecidos pela idade precisam de lentes para enxergar com clareza, nossa mente fraca precisa da Escritura para nos colocar no caminho reto do conhecimento de Deus. Sem ela, nos extraviamos instantaneamente.
A história da criação, portanto, é o espelho no qual Deus reflete Sua imagem para nós. Ele não dividiu Sua obra em seis dias por necessidade, mas por nossa causa. O objetivo é nos atrair ao único Deus, convidando-nos a meditar em Sua obra ao longo de todo o curso de nossa vida.
A estrutura de seis dias também revela o amor paternal de Deus. Ele não criou Adão em um mundo vazio e estéril.
Como um bom pai de família, Ele primeiro enriqueceu o mundo com luz, vegetação, animais e todos os recursos necessários, preparando um lar perfeito antes de colocar nele o homem.
Essa sequência demonstra Sua maravilhosa bondade e cuidado providencial para conosco.
Gênesis 1:31
E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o sexto dia.
A repetição da bondade da criação nos mostra o caráter de um Deus que não apenas é poderoso, mas também intrinsecamente bom.
Aplicação
- Resista à curiosidade vã. Quando surgirem perguntas sobre mistérios que a Bíblia não responde (como “o que Deus fazia antes da criação?”), reconheça-as como uma tentação para se desviar do que é realmente importante. Em vez de especular, foque em aprofundar seu conhecimento naquilo que Deus *revelou*.
- Medite na criação de forma estruturada. Use a estrutura de seis dias como um guia para sua meditação. Reserve um dia para pensar na maravilha da luz, outro para a beleza das plantas, e assim por diante. Isso o ajudará a não tratar a criação como algo garantido, mas como uma obra de arte a ser apreciada.
- Confie no cuidado paternal de Deus. Se Deus planejou e proveu tudo para a humanidade antes mesmo de ela existir, você pode confiar que Ele também cuidará de suas necessidades hoje. O Deus que preparou o Éden é o mesmo Deus que promete suprir todas as suas necessidades em Cristo Jesus (Filipenses 4:19).
2. O universo visível revela um reino invisível
Embora Moisés, no relato da criação em Gênesis 1, foque naquilo que podemos ver com nossos olhos, ele não ignora a realidade do mundo espiritual. Mais tarde na Escritura, ele introduz os anjos como ministros de Deus, o que nos leva à conclusão de que eles também são parte da Sua obra criadora.
O conhecimento dos anjos é útil para refutar muitos erros. A dignidade dessas criaturas celestiais é tão grande que muitos, ao longo da história, foram tentados a atribuir-lhes uma divindade própria.
Outros, como os maniqueus, inventaram um princípio do mal (o Diabo) que seria co-eterno com Deus, atribuindo a ele a criação das coisas más. Se nosso entendimento se enreda nessas fantasias, não podemos dar a Deus a glória que Ele merece como o único Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis.
A Bíblia nos ensina a verdade: não há nada que exista que não tenha sido criado por Deus. A maldade, tanto no homem quanto no Diabo, não é da sua natureza original, mas de uma corrupção dessa natureza. Não houve nada, desde o princípio, em que Deus não tenha demonstrado Sua sabedoria e justiça.
Ao falar dos anjos, no entanto, devemos manter a moderação que a própria Escritura nos ensina. Devemos evitar especulações sobre hierarquias, ordens e números, que servem mais para satisfazer nossa curiosidade do que para nossa edificação.
O Espírito Santo nos ensina o que é útil, e omite o que não nos traz proveito. Nosso dever é ignorar voluntariamente o que a Palavra ignora.
O que a Bíblia nos ensina claramente sobre os anjos é que eles são espíritos celestiais que Deus usa para executar Seu serviço. Eles são Seus “exércitos” (Lucas 2:13),
Seus “ministros” (Salmo 103:21), que velam continuamente por nossa salvação. O profeta Eliseu experimentou o conforto dessa verdade de forma poderosa:
2 Reis 6:16-17
“Não tenha medo”, respondeu o profeta. “Aqueles que estão conosco são mais numerosos do que eles”. E Eliseu orou: “Senhor, abre os olhos dele para que veja”. Então o Senhor abriu os olhos do servo, e ele viu as colinas cheias de cavalos e carros de fogo ao redor de Eliseu.
Aplicação
- Busque a edificação, não a especulação. Quando o assunto for anjos ou o mundo espiritual, sempre se pergunte: “Este conhecimento me leva a um maior temor de Deus, a uma confiança mais profunda e a uma vida mais santa?”. Se a resposta for não, você provavelmente está no território da curiosidade inútil.
- Encontre conforto na proteção angelical. Em momentos de medo e ansiedade, lembre-se de que o exército celestial de Deus está ao seu redor. A promessa do Salmo 91:11 é para você: “Porque a seus anjos ele dará ordens a seu respeito, para que o protejam em todos os seus caminhos”.
- Mantenha o foco em Cristo. A visão de Jacó da escada (Gênesis 28:12) nos ensina uma lição vital: os anjos sobem e descem, mas Deus está no topo. Eles são ministros, não a fonte da bênção. Cristo é o mediador, e toda a ajuda que recebemos, mesmo através dos anjos, vem d'Ele e nos aponta para Ele.
3. A criação revela um Deus que é bom, mas combatido por um inimigo mau
A Escritura não nos ensina apenas sobre os anjos bons, mas também sobre os diabos. O propósito desse ensino é nos alertar sobre suas astúcias e nos armar para uma batalha contra inimigos poderosos.
Quando Satanás é chamado de “deus deste século”, “príncipe das potestades do ar” e “leão que ruge”, a intenção é nos despertar para uma vigilância diligente.
O apóstolo Pedro, após descrever o Diabo como um leão que busca a quem devorar, nos exorta: “Resistam-lhe, permanecendo firmes na fé” (1 Pedro 5:9). Paulo nos lembra que nossa luta não é contra carne e sangue, mas contra principados e potestades espirituais da maldade (Efésios 6:12).
É crucial entender que o Diabo é uma criatura de Deus, e sua maldade não é da sua natureza original, mas fruto de sua própria depravação ao se afastar de Deus.
Jesus diz que Satanás “não permaneceu na verdade” (João 8:44), o que indica que um dia ele esteve nela. Ele é o pai da mentira porque ela se originou nele, não em Deus. A Escritura nos ensina isso para que não atribuamos a Deus o mal que Ele não criou.
Apesar de seu poder, Satanás não pode fazer nada sem a permissão de Deus. A história de Jó nos mostra que ele se apresenta diante de Deus para pedir permissão antes de agir. Ele está sujeito à soberania de Deus, obrigado a obedecer mesmo contra a sua vontade. Deus usa os espíritos malignos para exercitar os fiéis e para executar Seus juízos sobre os ímpios.
Aplicação
- Leve a batalha espiritual a sério. Não seja ingênuo. Você tem um inimigo real que busca ativamente sua destruição. Esteja alerta, vigilante e preparado para resistir. A preguiça e o descuido são convites para o ataque.
- Lute a partir da vitória de Cristo. Embora nosso inimigo seja poderoso, nosso Capitão é infinitamente mais. Em Cristo, a cabeça da serpente já foi esmagada (Gênesis 3:15). Nós não lutamos para alcançar a vitória, mas a partir da vitória que já foi conquistada por Jesus na cruz.
- Use as armas de Deus. Deus não nos deixou indefesos. Ele nos deu a armadura completa descrita em Efésios 6. Vista-se diariamente com a verdade, a justiça, o evangelho, a fé, a salvação e a Palavra de Deus, tudo isso em oração.
Conclusão
A história da criação, conforme narrada na Escritura, não é um mero conto de origens. É uma revelação profunda do caráter do nosso Deus.
Ela nos apresenta um Criador eterno, bom e paternal, que preparou o mundo para nós. Ela nos revela a existência de um reino espiritual, com anjos que nos servem e demônios que nos combatem. E, acima de tudo, ela nos mostra que fomos criados para um propósito.
A meditação sobre as obras de Deus deve nos levar à adoração. Devemos nos deleitar no excelente teatro do mundo, mas sempre com o roteiro divino em mãos.
Ao fazermos isso, aprenderemos que Deus criou todas as coisas para o nosso proveito e salvação. Esse conhecimento deve nos mover a confiar n'Ele, invocá-Lo, louvá-Lo e amá-Lo com todo o nosso coração.
Que possamos olhar para o céu estrelado, para a beleza de uma floresta, para a complexidade do nosso próprio corpo, e ver não apenas a natureza, mas as digitais de um Deus que é, ao mesmo tempo, o poderoso Criador do universo e o nosso amoroso Pai celestial.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro I - Capítulo XIV - "A Escritura, Pela Criação do Mundo e de Todas as Coisas, Diferencia com Certas Marcas o Deus Verdadeiro dos Falsos Deuses"
Lista de estudos da série
1. O Espelho de Calvino: Sua miséria revelando a majestade de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. A Luz da Santidade: Por que conhecer a Deus precede conhecer a si mesmo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. O GPS da Alma: A semente de Deus no coração humano segundo Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. A Semente Corrompida: Por que a busca por Deus dá tão errado – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. O Teatro de Deus: A glória do Criador revelada em Sua criação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. As Lentes da Fé: A necessidade da Escritura para enxergar Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. A Prova do Espírito: A verdadeira autoridade da Bíblia segundo Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. As Digitais Divinas: Evidências que confirmam a Palavra de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Parceria Perfeita: A união da Palavra e do Espírito em Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. O Retrato do Criador: A imagem de Deus revelada nas Escrituras – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. A Fábrica de Ídolos: A proibição de imagens visíveis de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Um Trono para Um Rei: A adoração exclusiva exigida por Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Um Deus em Três Pessoas: Desvendando a Trindade com Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. O Roteiro da Criação: A revelação de Deus em Gênesis – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. As Configurações de Fábrica: O homem à imagem de Deus antes da queda – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. O Maestro Invisível: O governo ativo de Deus sobre todas as coisas – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. O Propósito da Providência: Como usar a soberania de Deus na vida real – Estudo Bíblico sobre as Institutas
18. O Grande Paradoxo: Deus usando o mal para Seus bons propósitos – Estudo Bíblico sobre as Institutas