Já se sentiu quebrado? Já olhou para o mundo, com sua dor, conflito e confusão, e pensou: “Algo está fundamentalmente errado”?
Essa sensação de que não somos o que deveríamos ser, e de que o mundo não funciona como deveria, é uma experiência humana universal.
É como usar um programa de computador cheio de bugs, que trava e falha, nos deixando frustrados e ansiando por uma versão que funcione perfeitamente.
Para entender o nosso estado atual de “defeito”, precisamos primeiro conhecer o nosso “projeto original”. Não podemos compreender a profundidade da nossa queda sem antes vislumbrar a altura da qual caímos.
Falar sobre nossa corrupção sem entender nossa integridade original é como descrever uma ruína sem nunca ter visto a planta do edifício original.
Por isso, a Escritura nos convida a voltar ao início, ao momento da criação do homem. Antes de mergulharmos na triste realidade da nossa condição caída, precisamos entender como Deus nos projetou para ser.
Este estudo nos ajudará a responder a uma pergunta fundamental: quais eram as nossas “configurações de fábrica”?
Como era o homem na integridade de sua criação, e o que isso revela sobre Deus e sobre o nosso verdadeiro propósito?
1. Fomos criados com uma alma imortal
O relato da criação nos lembra de nossa origem humilde, para nos proteger da soberba: o homem foi feito “do pó da terra” (Gênesis 2:7).
Não há nada mais irracional do que alguém que habita uma casa de barro, e que é ele mesmo pó, se orgulhar de sua própria dignidade.
No entanto, neste vaso de barro, Deus infundiu algo extraordinário: uma alma, um espírito imortal.
É inegável que o homem é composto de duas partes: o corpo e a alma. Por “alma”, entendemos uma essência imortal, embora criada, que é a parte mais nobre do ser humano.
A Escritura frequentemente usa os termos “alma” e “espírito” de forma intercambiável para se referir a essa parte imaterial de nós. Quando Salomão fala sobre a morte, ele diz que “o pó volte à terra, de onde veio, e o espírito volte a Deus, que o deu” (Eclesiastes 12:7).
Jesus, na cruz, e Estêvão, ao ser apedrejado, encomendaram seus espíritos a Deus, reconhecendo que, quando a alma se liberta da prisão do corpo, Deus é seu guardião perpétuo (Lucas 23:46; Atos 7:59).
A própria consciência, que distingue o bem do mal e responde ao juízo de Deus, é um sinal infalível de que nosso espírito é imortal. Como poderia um mero movimento sem essência, um impulso bioquímico, comparecer perante o tribunal de Deus e sentir o peso da condenação?
O corpo não teme o castigo espiritual; somente a alma o teme. Isso prova que ela tem uma existência real e contínua.
Aplicação
- Viva além do material. Você é mais do que seu corpo, sua carreira ou seus bens. Invista na saúde da sua alma através da oração, da meditação na Palavra e da comunhão com outros crentes. As coisas que nutrem sua alma são as únicas que você levará para a eternidade.
- Ouça sua consciência. Não ignore a voz da sua consciência como se fosse apenas um resquício de culpa cultural. Veja-a como um eco da eternidade em você, um lembrete de que você foi criado por um Deus justo e para prestar contas a Ele.
- Reavalie suas prioridades. A realidade de que você tem uma alma imortal deve mudar radicalmente suas prioridades. O que tem valor eterno em sua agenda para hoje? Como você pode investir naquilo que dura, em vez de apenas naquilo que é urgente?
2. Fomos criados à imagem e semelhança de Deus
A prova mais segura e firme da excelência da alma humana está na declaração de que fomos criados “à imagem e semelhança de Deus” (Gênesis 1:26-27). Embora a glória de Deus resplandeça de alguma forma em nosso aspecto físico, não há dúvida de que a sede principal da imagem de Deus está na alma.
A postura ereta do homem, com o rosto voltado para os céus, enquanto os animais olham para baixo, é um pequeno reflexo dessa verdade. Fomos criados para ter comunhão com Aquele que está acima de nós. Mas, em última análise, a imagem de Deus é espiritual.
Mas o que exatamente é essa imagem? Para entendê-la, o melhor caminho é olharmos para a nossa restauração em Cristo.
A Queda não apagou completamente a imagem de Deus em nós, mas a corrompeu e a deformou terrivelmente. O propósito da nossa salvação é que Cristo, o “segundo Adão”, nos restaure a essa integridade original.
O apóstolo Paulo nos diz como é essa restauração. Ele nos exorta a nos vestirmos “do novo homem, que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Colossenses 3:10) e que foi “criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Efésios 4:24).
A partir disso, podemos concluir que, em sua forma original, a imagem de Deus consistia em:
- Clareza de espírito: Um entendimento perfeito e verdadeiro conhecimento de Deus.
- Retidão de coração: Afeições e desejos perfeitamente alinhados com a vontade de Deus.
- Integridade de todas as partes: Uma harmonia completa, onde os sentidos e as paixões estavam regulados pela razão, e todo o ser do homem refletia a excelência de seu Criador.
Embora a sede principal da imagem de Deus estivesse no espírito e no coração, não havia nenhuma parte do homem, nem mesmo seu corpo, onde não brilhassem centelhas dessa glória.
Aplicação
- Veja o valor em cada pessoa. Toda pessoa que você encontrar hoje, não importa quão quebrada ou diferente de você, foi criada à imagem de Deus. Isso lhe confere um valor e uma dignidade imensos. Trate cada pessoa como portadora da imagem do Criador.
- Busque a restauração da imagem em você. O crescimento cristão é o processo de ter a imagem de Deus restaurada em nós pelo Espírito Santo. Busque ativamente crescer em conhecimento (estudando a Palavra), em justiça (praticando o que é reto) e em santidade (vivendo de forma separada para Deus).
- Use seus dons para refletir o Criador. A imagem de Deus em nós se expressava através de nossas capacidades. Use sua criatividade, sua inteligência, sua capacidade de amar e de se relacionar como formas de refletir o caráter do Deus que o criou.
3. Fomos criados com liberdade para escolher o bem
Deus adornou a alma do homem com um entendimento para que ele pudesse distinguir o bem do mal, e com uma vontade cujo ofício era escolher. Em sua condição original, o homem possuía livre-arbítrio, com o qual, se quisesse, poderia ter alcançado a vida eterna.
Adão tinha a capacidade de permanecer como foi criado; ele só caiu por sua própria vontade. Sua vontade era flexível, tanto para o bem quanto para o mal, e ele tinha uma retidão perfeita em seu entendimento.
Todas as suas faculdades estavam preparadas para obedecer, até que, perdendo a si mesmo, ele destruiu todo o bem que havia nele.
É aqui que os filósofos se perdem. Eles buscam um edifício inteiro e harmonioso em meio a ruínas. Eles argumentam corretamente que o homem não seria um ser racional se não tivesse livre escolha entre o bem e o mal.
Mas eles não levaram em conta a queda de Adão e a confusão que ela causou. Eles olham para o homem caído e tentam encontrar nele a liberdade original, misturando o céu com a terra.
Adão, ao ser criado, era muito diferente de nós, seus descendentes. Antes da Queda, cada faculdade de sua alma se adaptava perfeitamente à retidão. Seu entendimento era são e íntegro, e sua vontade era livre para escolher o bem.
Se alguém argumentar que ele foi colocado em uma posição frágil, a resposta é que o poder que ele recebeu de Deus era suficiente para remover toda desculpa.
Deus não era obrigado a dar ao homem uma vontade que não pudesse pecar. Adão recebeu a capacidade de perseverar, se quisesse, mas não recebeu a vontade de querer, pois a isso se seguiria a perseverança.
Eclesiastes 7:29
Assim, cheguei a esta conclusão: Deus fez os homens justos, mas eles foram em busca de muitas intrigas.
Aplicação
- Assuma a responsabilidade por seus pecados. É da nossa natureza caída procurar desculpas e culpar os outros, as circunstâncias ou até mesmo a Deus. A doutrina da integridade original de Adão nos ensina que a culpa pela queda da humanidade é inteiramente nossa. O primeiro passo para a graça é assumir a responsabilidade.
- Maravilhe-se com a graça da perseverança. Adão tinha a liberdade de cair; nós, em Cristo, recebemos o dom da perseverança (Filipenses 1:6). A graça de Deus não apenas nos salva, mas também nos sustenta. Agradeça a Deus não apenas por sua capacidade de escolher, mas por Sua graça que o impede de se desviar permanentemente.
- Celebre a verdadeira liberdade em Cristo. Antes de Cristo, estávamos escravizados pelo pecado. Em Cristo, somos libertos dessa escravidão para servir a Deus voluntariamente. A verdadeira liberdade não é a capacidade de fazer o que quisermos, mas o poder de fazer o que devemos.
Conclusão
Olhar para o homem em seu estado original é ao mesmo tempo inspirador e doloroso. Inspirador, porque nos mostra o quão nobre e excelente era o projeto de Deus para nós.
Fomos criados com uma alma imortal, para refletir a imagem do nosso Criador, com plena liberdade para desfrutar de comunhão com Ele.
Doloroso, porque nos lembra da grande altura da qual caímos. Conhecer nossa integridade original nos impede de culpar a Deus por nossa miséria atual e nos força a encarar a dura realidade de nossa própria corrupção.
Este conhecimento é o pano de fundo escuro sobre o qual a graça do Evangelho brilha com ainda mais intensidade.
É precisamente porque perdemos essa integridade que precisamos de um Salvador. É porque a imagem de Deus em nós foi desfigurada que precisamos ser recriados à imagem de Cristo.
O retrato do primeiro Adão em sua glória nos faz ansiar pelo segundo Adão, que veio não apenas para nos mostrar como deveríamos ter sido, mas para nos restaurar e nos levar a uma glória ainda maior.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro I - Capítulo XV - "Como o homem era ao ser criado. As faculdades da alma, a imagem de Deus, o livre-arbítrio e a primeira integridade da natureza"
Lista de estudos da série
1. O Espelho de Calvino: Sua miséria revelando a majestade de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. A Luz da Santidade: Por que conhecer a Deus precede conhecer a si mesmo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. O GPS da Alma: A semente de Deus no coração humano segundo Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. A Semente Corrompida: Por que a busca por Deus dá tão errado – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. O Teatro de Deus: A glória do Criador revelada em Sua criação – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. As Lentes da Fé: A necessidade da Escritura para enxergar Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. A Prova do Espírito: A verdadeira autoridade da Bíblia segundo Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. As Digitais Divinas: Evidências que confirmam a Palavra de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Parceria Perfeita: A união da Palavra e do Espírito em Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. O Retrato do Criador: A imagem de Deus revelada nas Escrituras – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. A Fábrica de Ídolos: A proibição de imagens visíveis de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. Um Trono para Um Rei: A adoração exclusiva exigida por Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. Um Deus em Três Pessoas: Desvendando a Trindade com Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. O Roteiro da Criação: A revelação de Deus em Gênesis – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. As Configurações de Fábrica: O homem à imagem de Deus antes da queda – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. O Maestro Invisível: O governo ativo de Deus sobre todas as coisas – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. O Propósito da Providência: Como usar a soberania de Deus na vida real – Estudo Bíblico sobre as Institutas
18. O Grande Paradoxo: Deus usando o mal para Seus bons propósitos – Estudo Bíblico sobre as Institutas