O Grande Paradoxo: Deus usando o mal para Seus bons propósitos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

Nós chegamos agora a uma das questões mais difíceis de toda a teologia. É um terreno sagrado, onde devemos pisar com reverência e humildade. Se, como vimos, Deus governa ativamente cada detalhe do universo, qual é a relação d'Ele com o pecado e o mal?

A Bíblia afirma, de um lado, a perfeita santidade de Deus e, de outro, Sua soberania absoluta sobre tudo o que acontece, inclusive sobre as ações dos homens maus e do próprio Satanás. Como essas duas verdades podem coexistir?

O pensamento carnal não consegue conciliar isso. Como pode Deus usar instrumentos maus sem Se contaminar com a maldade deles? 

Como, em uma mesma ação, Deus pode ser perfeitamente justo e o homem completamente culpado? Muitos, diante dessa tensão, recorrem a uma distinção simplista, dizendo que Deus apenas “permite” o mal, mas não o “ordena”.

No entanto, a Escritura nos leva a uma conclusão mais profunda e desafiadora. Veremos que Deus, em Sua providência misteriosa, se serve dos ímpios e inclina suas vontades para que executem os Seus desígnios, sem que, no entanto, Ele fique manchado de qualquer culpa. 

Ele é o grande dramaturgo que, no palco da história, usa até mesmo os piores atores para cumprir o roteiro do Seu plano perfeito.

1. Deus não é um espectador passivo, mas o diretor soberano

A distinção entre Deus “fazer” e “permitir” o mal parece um nó difícil de desatar. A ideia de que Satanás e os ímpios estão sob o controle de Deus, de modo que Ele usa a malícia deles para cumprir Seus próprios fins, é chocante para muitos. 

Para evitar o que lhes parece um absurdo, eles recorrem ao subterfúgio de que Deus não “quer” o mal, mas apenas o “permite”.

No entanto, o próprio Deus, ao declarar abertamente que Ele é quem faz essas coisas, rejeita essa solução. Os homens não fazem nada sem a permissão tácita de Deus, e não podem deliberar nada além do que Ele já determinou em Seu conselho secreto. A afirmação do Salmo de que “nosso Deus está nos céus; ele faz tudo o que lhe agrada” (Salmo 115:3) se estende a todas as ações dos homens.

Vejamos alguns exemplos claros:

  • Jó: Satanás se apresenta diante de Deus para receber ordens. Ele não age sem a vontade de Deus. Embora os ministros da calamidade de Jó fossem Satanás e os ladrões sabeus, o próprio Jó confessa: “O Senhor o deu, o Senhor o tomou; louvado seja o nome do Senhor” (Jó 1:21). Ele reconheceu a mão de Deus como o autor principal daquela provação.
  • Acabe: Deus queria enganar o rei Acabe. O Diabo oferece seus serviços para isso. Deus, então, lhe dá uma ordem expressa: “Vá e faça isso. Você conseguirá” (1 Reis 22:22). A ideia de mera “permissão” se desfaz aqui. Seria ridículo um juiz apenas “permitir” que uma sentença fosse executada, em vez de ordená-la a seus oficiais.
  • A Cruz de Cristo: A crucificação de Jesus é o exemplo supremo. Os apóstolos, em oração, afirmam que Herodes, Pilatos, os gentios e o povo de Israel se uniram “para fazer o que o teu poder e a tua vontade haviam decidido de antemão que acontecesse” (Atos 4:28).

Em inúmeros outros lugares, Deus afirma que Ele endurece corações, incita inimigos, usa reis pagãos como Sua “vara” e “machado”, e dirige as ações dos homens para cumprir Seus juízos. 

Aquele que se contenta com a ideia de uma simples “permissão” está enfraquecendo a doutrina da providência e fazendo os juízos de Deus dependerem da vontade humana.

Aplicação

  • Submeta sua lógica à Escritura. A relação de Deus com o mal é um mistério que nossa mente não consegue compreender plenamente. Resista à tentação de criar teorias que “salvem a reputação” de Deus, mas que contradizem o que a Bíblia claramente ensina. Nossa tarefa é crer na Palavra, não domesticá-la.
  • Encontre conforto na soberania, não no acaso. Saber que nem mesmo as ações mais más dos homens estão fora do controle de Deus é uma fonte de profundo consolo. Isso significa que, mesmo no meio da pior maldade que você possa enfrentar, Deus está no controle e tem um propósito redentor.
  • Adore o Deus que está acima de tudo. Em vez de se frustrar com o mistério, deixe que ele o leve à adoração. Louve a Deus por Sua sabedoria inescrutável e Seus caminhos insondáveis. A verdadeira fé floresce na confiança, não na compreensão total.

2. Deus tem domínio soberano sobre o coração e a mente de todos

A providência de Deus não é apenas externa, mas também interna. Salomão afirma que “o coração do rei é como um ribeiro de águas nas mãos do Senhor; este o inclina para onde quer” (Provérbios 21:1).

 Isso se aplica a toda a humanidade. Tudo o que concebemos em nossa mente, Deus, por uma inspiração secreta, o encaminha para o Seu fim.

Se Deus não operasse interiormente no coração dos homens, não seria verdade que Ele endurece corações, cega entendimentos e entrega as pessoas a uma mente reprovada. 

Alguns tentam escapar disso dizendo que Deus apenas permite que Satanás os cegue. Mas o Espírito Santo afirma claramente que a cegueira e a dureza vêm do justo juízo de Deus.

Isso não significa que o homem não age por sua própria vontade. Quando Deus move o coração de um homem, Ele não anula sua vontade, mas a utiliza.

O homem é movido por Deus, mas também é movido por sua própria vontade pecaminosa. É por isso que ele permanece plenamente responsável.

Quando dizemos que a vontade de Deus é a causa de todas as coisas, estamos estabelecendo Sua providência para presidir todos os conselhos dos homens. Ele não apenas mostra Sua eficácia nos eleitos, que são conduzidos pelo Espírito Santo, mas também força os réprobos a fazer o que Ele deseja.

Êxodo 4:21
Disse o SENHOR a Moisés: Quando voltares ao Egito, atenta que faças diante de Faraó todas as maravilhas que te hei posto na mão; mas eu lhe endurecerei o coração, para que não deixe ir o povo.

A Bíblia afirma tanto que Faraó endureceu seu próprio coração (Êxodo 8:15) quanto que Deus o endureceu. Ambas as coisas são verdadeiras. A vontade pecaminosa do homem e a vontade soberana de Deus trabalham no mesmo ato, mas com intenções e naturezas completamente diferentes.

Aplicação

  • Ore pela salvação dos outros com confiança. Saber que Deus tem o poder de inclinar o coração de qualquer pessoa deve nos dar grande ousadia na oração evangelística. Não há coração tão duro que Ele não possa amolecer.
  • Humilhe-se sob a mão de Deus. Se até mesmo suas boas inclinações são um dom da graça de Deus, que opera em seu coração, não há espaço para o orgulho. Agradeça a Deus não apenas pelo que você faz, mas também pelo querer e pelo efetuar em você (Filipenses 2:13).
  • Não questione os motivos de Deus. Por que Deus escolhe endurecer uns e amolecer outros? Este é um dos mistérios profundos de Sua soberania. Em vez de questionar, devemos adorar, lembrando-nos das palavras de Paulo: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?” (Romanos 9:20).

3. A distinção crucial: o mandamento de Deus e a Sua vontade secreta

Aqui chegamos à solução da aparente contradição. Se Deus usa e dirige as más ações dos homens, não se torna Ele o autor do pecado? E se os homens estão apenas cumprindo o que Deus determinou, não são eles injustamente condenados?

A resposta está em distinguir entre o mandamento de Deus (Sua vontade revelada) e a Sua vontade secreta (Sua providência). O mandamento é a regra para nossa obediência. A vontade secreta é o plano soberano pelo qual Ele governa o universo.

Absalão, ao violar as mulheres de seu pai, estava cumprindo a vontade secreta de Deus de punir o adultério de Davi. No entanto, ele não estava obedecendo ao mandamento de Deus. Pelo contrário, com seu apetite perverso, ele o estava violando. Portanto, ele não é desculpável.

Deus não nos manda pecar. Nós vamos atrás do mal por causa da fúria de nossos próprios desejos, deliberadamente nos opondo a Ele. Ao fazermos o mal, nós servimos à Sua justa ordenação, pois Ele, em Sua sabedoria infinita, sabe como usar maus instrumentos para realizar o bem.

Assim, em um mesmo ato, podemos contemplar a iniquidade do homem e a justiça de Deus. A maldade está no homem, não em Deus. Como o calor do sol pode fazer um cadáver exalar um mau cheiro? 

O mau cheiro não vem dos raios do sol, mas da corrupção do cadáver. Da mesma forma, quando Deus age através de um homem mau, a sujeira não se apega a Ele, pois Ele usa a maldade do homem para um fim justo.

Portanto, não há duas “vontades” contrárias em Deus. Há apenas uma vontade simples, que nos parece múltipla por causa da nossa incapacidade de compreender como Ele, de diversas maneiras, quer e não quer que a mesma coisa aconteça. Em um nível, Ele não quer o adultério, pois o proíbe em Sua Lei. Em outro nível, Ele quer o adultério de Davi, pois o usa para puni-lo.

Aplicação

  • Foque na vontade revelada. Sua responsabilidade é obedecer ao que Deus mandou em Sua Palavra. Deixe a vontade secreta de Deus para Ele. Não tente viver se baseando em suposições sobre o plano oculto d'Ele.
  • Não chame o mal de bem. Mesmo que Deus use o pecado de alguém para um bom propósito, o pecado continua sendo pecado. Nunca use a providência de Deus para desculpar ou minimizar a gravidade da maldade humana.
  • Encontre beleza no paradoxo. A traição de Judas é o exemplo máximo. Em um mesmo ato, vemos a pior maldade humana e a maior demonstração da justiça e do amor de Deus. A causa era diferente: Judas agiu por ganância, Deus agiu para redimir o mundo. A capacidade de Deus de transformar o maior mal na maior bênção deve nos encher de espanto e adoração.

Conclusão

Lidar com a relação entre a soberania de Deus e o mal humano é como olhar para o sol; o brilho pode ofuscar nossos olhos. Exige de nós a máxima humildade e submissão à Palavra de Deus.

A Escritura nos ensina que Deus não é um mero espectador, mas o diretor soberano do grande drama da história. Ele usa todos os atores, bons e maus, para cumprir o enredo que Ele escreveu desde a eternidade, sem jamais Se tornar o autor do mal que eles praticam.

Para os que não creem, esta doutrina é loucura. Para os que creem, é um refúgio. Ela nos assegura que nada, nem mesmo o pior dos males, pode frustrar o plano de Deus. 

Ela nos dá a certeza de que a mão que governa o universo é a mesma mão que foi perfurada por nós, uma mão que é soberanamente poderosa e infinitamente boa.

Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro I - Capítulo XVIII - "Deus se serve dos ímpios e inclina sua vontade para que executem seus desígnios, ficando Ele, no entanto, limpo de toda mancha"


Lista de estudos da série

1. O Espelho de Calvino: Sua miséria revelando a majestade de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas

2. A Luz da Santidade: Por que conhecer a Deus precede conhecer a si mesmo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

3. O GPS da Alma: A semente de Deus no coração humano segundo Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas

4. A Semente Corrompida: Por que a busca por Deus dá tão errado – Estudo Bíblico sobre as Institutas

5. O Teatro de Deus: A glória do Criador revelada em Sua criação – Estudo Bíblico sobre as Institutas

6. As Lentes da Fé: A necessidade da Escritura para enxergar Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas

7. A Prova do Espírito: A verdadeira autoridade da Bíblia segundo Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas

8. As Digitais Divinas: Evidências que confirmam a Palavra de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas

9. A Parceria Perfeita: A união da Palavra e do Espírito em Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas

10. O Retrato do Criador: A imagem de Deus revelada nas Escrituras – Estudo Bíblico sobre as Institutas

11. A Fábrica de Ídolos: A proibição de imagens visíveis de Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas

12. Um Trono para Um Rei: A adoração exclusiva exigida por Deus – Estudo Bíblico sobre as Institutas

13. Um Deus em Três Pessoas: Desvendando a Trindade com Calvino – Estudo Bíblico sobre as Institutas

14. O Roteiro da Criação: A revelação de Deus em Gênesis – Estudo Bíblico sobre as Institutas

15. As Configurações de Fábrica: O homem à imagem de Deus antes da queda – Estudo Bíblico sobre as Institutas

16. O Maestro Invisível: O governo ativo de Deus sobre todas as coisas – Estudo Bíblico sobre as Institutas

17. O Propósito da Providência: Como usar a soberania de Deus na vida real – Estudo Bíblico sobre as Institutas

18. O Grande Paradoxo: Deus usando o mal para Seus bons propósitos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

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