O Ministério em Ruínas: Quando o serviço se transforma em busca por poder – Estudo Bíblico sobre as Institutas

Imagine contratar um arquiteto para construir sua casa dos sonhos, mas ele não entende nada de engenharia. Ou confiar sua saúde a um médico que nunca estudou medicina. Ou embarcar em um avião pilotado por alguém que só conhece a cabine por fotos. 

Em cada caso, o desastre é iminente. Por quê? Porque a pessoa tem o título, mas não tem a qualificação, a motivação nem a competência para exercer a função.

De forma muito mais grave, o mesmo pode acontecer com a liderança na Igreja.

Quando as pessoas que ocupam os cargos de pastores, presbíteros e bispos perdem de vista o propósito de seu chamado, a estrutura que Deus designou para edificar Seu povo se torna uma ferramenta de destruição. 

O governo que deveria ser um reflexo da ordem divina se transforma em uma tirania desordenada.

No último estudo, olhamos para o modelo de governo da Igreja Primitiva como um espelho de fidelidade. 

A partir de agora, faremos o doloroso exercício de comparar aquele modelo com o que acontece quando a liderança se corrompe. 

Veremos como toda a antiga forma de governo eclesiástico pode ser destruída pela tirania do orgulho, da ganância e da negligência. 

Este não é um estudo para apenas apontar dedos, mas para nos alertar e nos chamar a zelar pela pureza da liderança na casa de Deus.

1. A liderança é definida pelo caráter, não por um cargo

O ponto de partida para qualquer discussão sobre liderança na Igreja não é o poder ou a autoridade, mas o caráter

Na Igreja Primitiva, a primeira pergunta sobre um candidato a bispo era: "Ele é irrepreensível?". Sua doutrina e sua vida eram examinadas à luz dos rigorosos padrões bíblicos.

Contudo, quando o governo da igreja se degenera, esses critérios são os primeiros a serem abandonados. A santidade de vida e o conhecimento das Escrituras deixam de ser pré-requisitos. 

Em seu lugar, a igreja começa a nomear líderes com base em outras qualificações: habilidade jurídica, influência política, ou conexões familiares. A situação pode se tornar tão absurda que homens que são beberrões, jogadores ou de vida publicamente dissoluta são feitos bispos, em total desprezo aos antigos cânones. 

O absurdo chega ao cúmulo quando até mesmo crianças de dez anos são nomeadas para cargos de liderança, uma monstruosidade que zomba de toda a razão e ordem divina.

O apóstolo Paulo, ao instruir Timóteo, foi enfático: “É necessário, pois, que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher, temperante, sóbrio, modesto, hospitaleiro, apto para ensinar; não dado ao vinho, não violento, porém cordato, inimigo de contendas, não avarento” (1 Timóteo 3:2-3). 

Quando uma igreja ignora essa lista e ordena líderes cujas vidas são o oposto do que Paulo descreve, ela não está apenas cometendo um erro administrativo; está minando o próprio fundamento da liderança espiritual.

Aplicação

  • Ore por líderes íntegros: Interceda constantemente para que Deus levante e sustente homens e mulheres cujo caráter seja a sua principal qualificação, e não seu carisma, sua inteligência ou suas conexões.

  • Valorize o caráter acima do carisma: Em nossa cultura obcecada por celebridades, é fácil ser atraído por líderes carismáticos. Treine seu coração e sua mente para valorizar a humildade, a integridade e a fidelidade bíblica acima de qualquer brilho exterior.

  • Se você aspira à liderança, comece pelo seu coração: Antes de buscar qualquer ofício na igreja, busque a santificação em sua própria vida. O ministério mais eficaz flui de um coração que foi humilhado e moldado por Deus.

  • Não ignore os sinais de alerta: Quando um líder vive de forma inconsistente com as Escrituras, não é um ato de deslealdade apontar isso com amor e de acordo com o processo bíblico. A saúde de todo o corpo depende da integridade de seus líderes.

2. A liderança é um serviço, não um meio de vida

A segunda grande corrosão do governo da igreja acontece quando o ministério deixa de ser uma vocação para servir e se torna uma carreira para benefício próprio. 

Na Igreja Primitiva, a comunidade participava ativamente na escolha de seus líderes, garantindo que homens idôneos fossem escolhidos. 

Com o tempo, esse direito foi roubado do povo e concentrado nas mãos de um pequeno grupo de clérigos (os cânones), que passaram a distribuir os cargos eclesiásticos como se fossem propriedades privadas.

A eleição, que antes era um ato sagrado, tornou-se um negócio corrupto. Os ofícios da igreja começaram a ser distribuídos com base em parentesco, amizade, ou como pagamento por serviços desonestos. 

Esta prática, conhecida como simonia (a compra e venda de cargos espirituais), tornou-se a norma. 

O próprio nome dado aos cargos – "benefícios" – revelava a mentalidade: eram vistos como presentes e recompensas para os homens, não como responsabilidades para com as igrejas.

A distorção mais monstruosa foi a acumulação de benefícios. Um único homem, que mal conseguia governar a si mesmo, podia ser pastor de cinco ou seis igrejas, acumulando suas rendas sem jamais visitar o rebanho. 

As igrejas eram tratadas como fazendas, das quais se extraía o lucro, e os pastores se tornaram senhores ausentes. Isso é uma abominação contra Deus e uma violação total da natureza do pastoreio.

Pedro adverte os presbíteros: “Pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade; nem como dominadores dos que vos foram confiados, mas tornando-vos modelos do rebanho” (1 Pedro 5:2-3). 

A liderança corrupta faz exatamente o oposto: busca ganância, age como dominadora e explora o rebanho.

Aplicação

  • Examine as motivações: Ao escolher ou seguir um líder, pergunte-se: qual parece ser sua motivação principal? A glória de Deus e o bem do rebanho, ou seu próprio conforto, status e ganho financeiro?

  • Desconfie do evangelho da prosperidade para líderes: Uma das formas mais claras dessa corrupção hoje é quando líderes usam o ministério para construir fortunas pessoais. A liderança cristã é um chamado ao sacrifício, não ao enriquecimento.

  • Sirva onde você está, sem buscar benefício: A melhor maneira de combater essa mentalidade é cultivar um coração de servo em sua própria vida. Sirva em sua igreja local sem esperar reconhecimento ou recompensa, simplesmente por amor a Cristo e ao seu povo.

3. A liderança exerce a função pastoral, não apenas rituais vazios

É possível ter uma estrutura cheia de “sacerdotes” e “clérigos”, e mesmo assim não ter um verdadeiro ministério. Isso acontece quando os líderes mantêm os títulos, mas abandonam as funções essenciais que Deus lhes confiou. 

No sistema papal, os homens são ordenados presbíteros não para ensinar e pastorear, mas primariamente para “sacrificar” na missa. Os diáconos não são ordenados para cuidar dos pobres, mas para realizar cerimônias, como apresentar o cálice.

O ofício de pastor foi esvaziado de seu conteúdo principal: a pregação da Palavra e o cuidado das almas. Muitos líderes consideravam a pregação uma tarefa humilhante, indigna de sua posição.

Eles se ocupavam com o canto, a pompa das cerimônias e a administração de seus bens, mas a tarefa de apascentar o rebanho com a verdade de Deus era negligenciada. 

Como disse o antigo bispo Gregório Magno: "O mundo está cheio de sacerdotes, mas são poucos os obreiros na seara... Recebemos o ofício, mas não cumprimos com o nosso dever."

Tais líderes são como um pastor que nunca viu uma única ovelha de seu rebanho. Eles podem ter o título, a autoridade e a renda, mas não têm um ofício legítimo, pois abandonaram o trabalho que define o ofício. Sem a pregação fiel, a igreja morre de fome; sem o cuidado pastoral, as ovelhas se dispersam.

Paulo resumiu sua vida pastoral aos anciãos de Éfeso com estas palavras: “jamais deixei de vos anunciar todo o desígnio de Deus” (Atos 20:27). 

E ele os exortou: “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue” (Atos 20:28). O coração do ministério é a pregação fiel e o cuidado sacrificial.

Aplicação

  • Busque o alimento sólido da Palavra: Não se contente com uma igreja onde a pregação é superficial, baseada em entretenimento ou psicologia positiva. A marca de um ministério saudável é a exposição fiel e corajosa de toda a Escritura.

  • Não confunda atividade com espiritualidade: Uma igreja pode estar cheia de programas, eventos e rituais impressionantes, mas se as pessoas não estão sendo alimentadas com a Palavra e cuidadas pastoralmente, é um corpo doente, independentemente da agitação externa.

  • Encoraje seus pastores a pastorear: Liberte seus líderes da tirania das tarefas administrativas para que eles possam se dedicar "à oração e ao ministério da palavra" (Atos 6:4). A saúde de toda a igreja depende disso.

Conclusão

Quando olhamos para a devastação causada pela tirania do papado no governo da Igreja, não vemos apenas um sistema histórico corrupto. 

Vemos um aviso solene para todas as gerações. A Igreja de Cristo é sempre vulnerável à infiltração do orgulho, da ganância e da negligência humana. 

O sistema que Deus projetou para ser uma fonte de vida pode ser distorcido a ponto de se tornar um instrumento de opressão e morte espiritual.

Vimos que a verdadeira liderança é definida pelo caráter bíblico, motivada pelo serviço sacrificial e expressa na função pastoral de pregar e cuidar. 

Qualquer sistema que abandone esses fundamentos, não importa quão orgulhosamente reivindique a “sucessão apostólica”, não tem nada em comum com os apóstolos ou com a Igreja de Cristo.

Que o nosso coração não se encha de cinismo, mas de um zelo santo pela pureza da casa de Deus. Que possamos orar, trabalhar e insistir por uma liderança que espelhe a humildade, a integridade e o amor sacrificial do nosso Grande Pastor, o Senhor Jesus Cristo. Pois somente sob tal liderança o rebanho pode florescer em segurança e verdade.


Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro IV - Capítulo V - "Toda a forma antiga do governo eclesiástico foi destruída pela tirania do papado"

Lista de estudos da série

1. A Mãe Espiritual: Por que um cristão não pode crescer sem a Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

2. O DNA da Verdade: As marcas infalíveis da Igreja verdadeira – Estudo Bíblico sobre as Institutas

3. Vasos de Barro: Por que Deus usa líderes humanos e imperfeitos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

4. O Espelho do Passado: Lições da liderança e generosidade na Igreja Primitiva – Estudo Bíblico sobre as Institutas

5. O Ministério em Ruínas: Quando o serviço se transforma em busca por poder – Estudo Bíblico sobre as Institutas

6. Um Trono Vazio na Terra: Por que a Igreja tem uma única Cabeça, Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

7. A Sombra do Poder: Como a ambição corrompeu a liderança da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

8. Edificar ou Destruir: Os limites da autoridade na Igreja de Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

9. A Voz no Concílio: A verdadeira autoridade das assembleias da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

10. Um Rei para a Consciência: A liberdade do crente diante das regras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas

11. A Disciplina do Amor: As chaves que protegem e restauram a Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

12. O Jardim de Deus: Como a disciplina cultiva a saúde da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

13. A Armadilha da Piedade: As promessas que agradam a Deus e as que escravizam – Estudo Bíblico sobre as Institutas

14. A Graça Visível: Por que Deus nos deu os sacramentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

15. O Selo do Perdão: O significado profundo do batismo cristão – Estudo Bíblico sobre as Institutas

16. O Abraço da Aliança: Por que batizamos as crianças dos crentes – Estudo Bíblico sobre as Institutas

17. O Banquete do Rei: A Ceia do Senhor como alimento para a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas

18. Um Sacrifício, Uma Mesa: A Ceia como memorial, não como repetição – Estudo Bíblico sobre as Institutas

19. A Simplicidade de Cristo: Os dois sacramentos em contraste com invenções humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas

Semeando Vida

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