Edificar ou Destruir: Os limites da autoridade na Igreja de Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

Quem tem o direito de falar por Deus? Em um mundo cristão repleto de vozes – pastores, escritores, influenciadores digitais, denominações e concílios – a quem devemos ouvir?

Quando uma igreja estabelece uma doutrina ou toma uma decisão, que autoridade ela realmente possui? Podemos, ou devemos, questioná-la?

Essa é uma das questões mais fundamentais e práticas da vida cristã. Se a autoridade da igreja for ilimitada, corremos o risco de cair em uma tirania espiritual, onde a voz humana silencia a voz de Deus. 

Se, por outro lado, rejeitarmos toda e qualquer autoridade, caímos no caos do individualismo, onde cada um se torna seu próprio papa.

No último estudo, vimos como a liderança da igreja, ao longo da história, se corrompeu, transformando o serviço em domínio. 

A partir de agora, vamos examinar o próprio conceito de poder eclesiástico. Qual é a verdadeira autoridade espiritual que a Igreja possui? 

De onde ela vem, qual é o seu propósito e, mais importante, quais são os seus limites? Descobrir a resposta bíblica para essa pergunta é essencial para nos mantermos seguros, edificados e verdadeiramente livres em Cristo.

1. O poder da Igreja existe para edificar, não para destruir

O ponto de partida de toda autoridade na Igreja é o seu propósito. 

O apóstolo Paulo define isso de forma clara e definitiva: o poder que o Senhor deu aos seus ministros é para edificação, e não para destruição (2 Coríntios 10:8). Esta é a regra de ouro que deve governar todo o exercício da autoridade espiritual.

Isso significa que qualquer uso do poder que humilha, oprime, desvia as pessoas de Cristo ou as aprisiona em tradições humanas é ilegítimo. 

A autoridade da Igreja não é um poder autônomo, mas um serviço. Os líderes não são senhores da fé do povo, mas "servidores de Cristo" e servos do povo, por amor a Cristo (1 Coríntios 4:1).

A única maneira de edificar a Igreja é conservar intacta a autoridade de Cristo, seu único e verdadeiro Mestre. A voz do Pai troou nos céus com uma ordem clara: “A ele ouvi” (Mateus 17:5). 

Portanto, a autoridade da Igreja nunca deve competir com a de Cristo, mas deve estar inteiramente a serviço dela. 

Ela deve se manter dentro dos limites estritos estabelecidos por Ele, para não ser arrastada pela imaginação e ambição humanas para a tirania, o que está muito longe da Igreja de Cristo.

Aplicação

  • Examine como a autoridade é exercida em sua comunidade: A liderança em sua igreja inspira vida, encoraja o crescimento e aponta as pessoas para a liberdade em Cristo (edificação)? Ou ela gera medo, controle excessivo e dependência do líder (destruição)?

  • Apoie o uso correto da autoridade: Ore por seus líderes, para que usem sua autoridade para construir e não para derrubar. Agradeça e encoraje-os quando seu ensino e liderança o aproximam de Cristo e de Sua Palavra.

  • Você está sob a autoridade de Cristo? A questão não é apenas para os líderes. Você se submete à autoridade de Cristo como a regra final de sua vida, ou busca líderes que apenas confirmem suas próprias opiniões e desejos?

2. A autoridade da Igreja está amarrada à Palavra de Deus

De onde vem a autoridade de um pastor ou mestre? Ela não reside em sua personalidade, em sua inteligência ou em sua posição. 

A dignidade e a autoridade que o Espírito Santo confere aos líderes na Escritura não são dadas às pessoas em si, mas ao seu ministério da Palavra de Deus. Fora da Palavra, eles não têm nenhuma autoridade espiritual.

Esse princípio é consistente em toda a Bíblia. Moisés, o príncipe dos profetas, só foi ouvido porque transmitiu fielmente o que o Senhor lhe ordenara. A autoridade dos sacerdotes estava condicionada a terem "a lei da verdade" em sua boca (Malaquias 2:6-7). 

Os profetas, como Ezequiel e Jeremias, eram enfaticamente lembrados de que deveriam falar apenas as palavras que Deus lhes dava. Sua autoridade vinha da frase: "Assim diz o Senhor".

O mesmo se aplica aos apóstolos do Novo Testamento. Apesar de todos os seus títulos admiráveis – “luz do mundo”, “sal da terra” –, sua comissão era limitada: ensinar tudo o que Cristo lhes havia ordenado (Mateus 28:20). 

O próprio Cristo, o Mestre supremo, se submeteu a esta regra, dizendo: “A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou” (João 7:16). Se o próprio Filho se limitou a entregar a mensagem do Pai, que ministro ousaria inventar sua própria mensagem?

Portanto, a autoridade da Igreja não é ilimitada; ela está sujeita à Palavra do Senhor e, de certo modo, encerrada nela.

Aplicação

  • Submeta todo ensino à autoridade da Escritura: Como os crentes de Bereia (Atos 17:11), examine as Escrituras para confirmar se o que está sendo pregado é verdadeiro. A autoridade final não está no púlpito, mas na Palavra.

  • Não confunda o mensageiro com a mensagem: Nossa lealdade não é para com um pastor ou um líder, mas para com Cristo e Sua Palavra. Um verdadeiro homem de Deus sempre apontará para além de si mesmo, em direção à autoridade das Escrituras.

  • Se você ensina, seja um mensageiro fiel: Se você lidera um estudo bíblico, uma classe de escola dominical ou discipula alguém, sua tarefa não é compartilhar suas próprias opiniões, mas expor fielmente a Palavra de Deus. A autoridade está na mensagem, não no mensageiro.

3. Cristo é o Mestre final e insuperável da Igreja

A história da revelação nos mostra que Deus falou de muitas maneiras, mas Sua Palavra final e definitiva foi dita em Seu Filho. 

Antes de Cristo, a verdade divina brilhava como a luz do crepúsculo. Os patriarcas recebiam revelações secretas. Depois, Deus formalizou Sua Palavra na Lei escrita, que foi posteriormente explicada e aplicada pelos profetas.

No entanto, quando Cristo, o “sol da justiça”, apareceu, Ele trouxe a iluminação plena e perfeita do meio-dia. O autor de Hebreus captura essa verdade de forma magnífica:

Hebreus 1:1-2
Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho...

Isso significa que, com a vinda de Cristo e o testemunho apostólico sobre Ele, a revelação necessária para a nossa salvação está completa. 

A doutrina de Cristo é a vontade final e inviolável de Deus. Ele é o Mestre a quem o Pai ordenou que todos ouvissem. Não devemos esperar nem inventar novas doutrinas. A tarefa da Igreja, a partir de então, é permanecer fielmente nesta única e perfeita doutrina.

O papel do Espírito Santo não é introduzir novas verdades, mas iluminar nossos corações para entendermos o que Cristo já nos ensinou. Jesus prometeu que o Espírito “vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (João 14:26). 

A obra do Espírito não nos torna independentes da Palavra, mas nos torna dependentes dela de forma mais profunda e verdadeira.

Aplicação

  • Desconfie de quem alega "novas revelações": Tenha cuidado com líderes ou movimentos que afirmam receber novas doutrinas ou revelações que vão além ou contradizem a Escritura. A revelação de Deus em Cristo é final e suficiente.

  • Encontre segurança na Palavra completa: Você não precisa viver ansioso, buscando a próxima "palavra profética" para sua vida. Deus já lhe deu tudo o que você precisa para a vida e a piedade em Sua Palavra escrita. Descanse na suficiência das Escrituras.

  • Faça de Cristo seu professor principal: Embora aprendamos com pastores e mestres, nosso Mestre final é Cristo. Sature sua mente com Seus ensinamentos nos Evangelhos. Deixe que a voz dEle seja a mais alta e clara em sua vida.

4. A Igreja é a guardiã da verdade, não a sua inventora

Diante do que foi dito, como entender as promessas de que a Igreja jamais será abandonada por Cristo e que ela é a "coluna e baluarte da verdade" (1 Timóteo 3:15)? 

A igreja romana usa esses textos para argumentar que a Igreja (representada por seus concílios e pelo papa) é infalível e pode, portanto, criar novos dogmas de fé.

Esta é uma distorção perigosa. A Igreja não erra nas coisas necessárias para a salvação, não porque possui uma sabedoria própria, mas precisamente porque ela abandona toda a sua própria sabedoria e se deixa ensinar humildemente pelo Espírito Santo através da Palavra. 

A autoridade da Igreja está inseparavelmente unida à Palavra. Separada da Palavra, ela não tem autoridade alguma.

A Igreja é a “coluna e baluarte da verdade” não porque ela cria a verdade, mas porque Deus a usa como o instrumento para guardar, proteger e proclamar a verdade ao mundo. 

Se a pregação fiel do Evangelho cessar, a verdade desmorona, e a Igreja deixa de ser Igreja. A verdade de Deus não depende da Igreja, mas a Igreja depende da verdade de Deus.

O exemplo do Concílio de Niceia é instrutivo. Ao declarar que o Filho é "consubstancial" ao Pai, os pais da igreja não estavam inventando uma nova doutrina. 

Eles estavam simplesmente usando a palavra mais precisa para resumir e defender o que a Escritura ensina em inúmeros lugares: que Cristo é o Deus verdadeiro e eterno, um com o Pai. Eles estavam interpretando fielmente a Palavra, não adicionando a ela.

Aplicação

  • Ame a Igreja como guardiã da fé: Agradeça a Deus pelo papel histórico da Igreja em preservar e transmitir a sã doutrina através dos séculos, muitas vezes com grande custo. Valorize os credos e confissões históricas como resumos fiéis da fé bíblica.

  • Nunca coloque a tradição acima da Escritura: As decisões de concílios e as tradições da igreja são valiosas, mas devem sempre ser testadas pela autoridade superior da Palavra de Deus. A Escritura julga a Igreja, não o contrário.

  • Participe da missão de guardar a verdade: Todo cristão tem a responsabilidade de ajudar a guardar a pureza da doutrina. Faça isso estudando a Palavra, participando de discussões teológicas saudáveis e ensinando a verdade fielmente em sua esfera de influência.

Conclusão

A verdadeira autoridade da Igreja não é um poder tirânico para dominar as consciências, mas um serviço humilde para edificar os santos. 

Ela não é ilimitada, mas está inteiramente amarrada à Palavra de Deus. Ela não inventa novas doutrinas, pois Cristo, o Mestre final, já nos falou de forma completa e definitiva. Seu papel sagrado é ser a fiel guardiã e proclamadora dessa verdade imutável.

Essa compreensão nos liberta de dois extremos perigosos: a submissão cega a qualquer autoridade humana e a rejeição arrogante de toda a liderança. 

Em vez disso, somos chamados a um caminho de discernimento maduro: honrar e nos submeter aos líderes que nos servem fielmente com a Palavra, enquanto testamos todo ensino pela autoridade final das Escrituras.

Que possamos amar e apoiar uma Igreja que encontra sua autoridade não em si mesma, mas em sua obediência ao seu único Senhor e Mestre, Jesus Cristo.


Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro IV - Capítulo VIII - "O poder da Igreja para determinar dogmas de fé. A licença desenfreada com que o papado a usou para corromper toda a pureza da doutrina"

Lista de estudos da série

1. A Mãe Espiritual: Por que um cristão não pode crescer sem a Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

2. O DNA da Verdade: As marcas infalíveis da Igreja verdadeira – Estudo Bíblico sobre as Institutas

3. Vasos de Barro: Por que Deus usa líderes humanos e imperfeitos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

4. O Espelho do Passado: Lições da liderança e generosidade na Igreja Primitiva – Estudo Bíblico sobre as Institutas

5. O Ministério em Ruínas: Quando o serviço se transforma em busca por poder – Estudo Bíblico sobre as Institutas

6. Um Trono Vazio na Terra: Por que a Igreja tem uma única Cabeça, Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

7. A Sombra do Poder: Como a ambição corrompeu a liderança da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

8. Edificar ou Destruir: Os limites da autoridade na Igreja de Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

9. A Voz no Concílio: A verdadeira autoridade das assembleias da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

10. Um Rei para a Consciência: A liberdade do crente diante das regras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas

11. A Disciplina do Amor: As chaves que protegem e restauram a Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

12. O Jardim de Deus: Como a disciplina cultiva a saúde da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

13. A Armadilha da Piedade: As promessas que agradam a Deus e as que escravizam – Estudo Bíblico sobre as Institutas

14. A Graça Visível: Por que Deus nos deu os sacramentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

15. O Selo do Perdão: O significado profundo do batismo cristão – Estudo Bíblico sobre as Institutas

16. O Abraço da Aliança: Por que batizamos as crianças dos crentes – Estudo Bíblico sobre as Institutas

17. O Banquete do Rei: A Ceia do Senhor como alimento para a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas

18. Um Sacrifício, Uma Mesa: A Ceia como memorial, não como repetição – Estudo Bíblico sobre as Institutas

19. A Simplicidade de Cristo: Os dois sacramentos em contraste com invenções humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas

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