A palavra "disciplina" muitas vezes evoca sentimentos negativos em nossa cultura. Pensamos em punição, em regras rígidas, em um ambiente de julgamento e controle.
Para muitos, a ideia de "disciplina eclesiástica" é uma das razões pelas quais se afastam da igreja, vendo-a como uma instituição que busca oprimir em vez de libertar.
No entanto, e se a verdadeira disciplina da igreja, conforme ordenada por Cristo, não for um fardo, mas uma expressão do amor de Deus?
E se seu propósito não for punir, mas proteger, restaurar e preservar a saúde espiritual de todo o corpo? Assim como um pai amoroso disciplina um filho para o seu bem, Deus estabeleceu uma ordem em Sua casa para o nosso bem-estar.
Esta é a terceira e última parte do poder espiritual da Igreja: a jurisdição, ou a autoridade para aplicar a disciplina.
Esta é talvez a área mais incompreendida e abusada da autoridade da igreja. Neste estudo, vamos explorar a necessidade da disciplina, a sua finalidade redentora e a forma como Cristo ordenou que ela fosse exercida. Ao fazê-lo, descobriremos a diferença entre a disciplina que liberta e a tirania que atormenta as almas.
1. A Igreja possui duas chaves: a da Palavra e a da disciplina
Quando falamos de jurisdição na Igreja, tudo depende do conceito do "poder das chaves", que Cristo deu à Sua Igreja. No entanto, é crucial entender que a Bíblia fala desse poder de duas maneiras distintas, embora relacionadas. Confundi-las é a raiz de muitos abusos de autoridade.
A primeira menção está em Mateus 16:19, quando Jesus diz a Pedro: "Dar-te-ei as chaves do reino dos céus". Como vimos em estudos anteriores, este poder está diretamente ligado ao ministério da Palavra.
O Evangelho, quando pregado, abre as portas do céu para os que creem, oferecendo o perdão dos pecados (desatando). Ao mesmo tempo, ele declara a condenação para os que não creem (atando). Essa chave é exercida toda vez que o Evangelho é proclamado fielmente.
A segunda menção está em Mateus 18:18, no contexto da disciplina eclesiástica. Depois de descrever o processo para lidar com um irmão pecador que se recusa a ouvir a igreja, Jesus diz a todos os discípulos: "tudo o que ligardes na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra terá sido desligado nos céus".
Aqui, "ligar" refere-se à excomunhão, à remoção temporária de alguém da comunhão dos fiéis por causa de sua obstinação no pecado. "Desligar" refere-se à restauração dessa pessoa quando ela se arrepende.
Enquanto a primeira chave se refere à doutrina e à pregação universal, a segunda se refere à disciplina e à vida dos membros da comunidade. Ambas são expressões da autoridade de Cristo, mas operam em esferas diferentes.
A pregação anuncia a salvação; a disciplina preserva a santidade da comunidade salva. É essencial não confundir o ministério geral da Palavra com a jurisdição específica da disciplina.
Aplicação
-
Valorize a pregação como o principal exercício das chaves: Toda vez que você ouve o Evangelho e a promessa do perdão em Cristo, as portas do céu estão sendo abertas para você. Receba a pregação não como uma simples palestra, mas como um ato de autoridade divina que lhe garante o perdão.
-
Entenda o propósito da disciplina: Se um dia você for confrontado por um pecado, ou precisar confrontar um irmão, lembre-se de que o objetivo não é punir, mas restaurar. A disciplina é a chave que "desliga" a pessoa do pecado e a "liga" novamente à comunhão com Cristo e Sua Igreja.
-
Não transforme o Evangelho em lei: A chave da Palavra é para proclamar a graça. Cuidado com a tendência de usar o púlpito não para oferecer perdão, mas para criar novas leis e fardos para a consciência, confundindo o Evangelho com a disciplina.
2. A disciplina serve para proteger a santidade da Igreja e restaurar o pecador
Por que a disciplina é tão necessária em uma igreja bem ordenada? Porque o seu propósito é inteiramente redentor e protetor. A disciplina eclesiástica, quando exercida corretamente, não é um poder para destruir, mas uma ferramenta para curar e preservar. Seus fins principais são três:
-
Prevenir os escândalos e proteger a honra de Cristo. Quando pessoas que se professam cristãs vivem em pecado aberto e sem arrependimento, o nome de Cristo é desonrado. A disciplina serve para mostrar ao mundo que a Igreja não tolera o mal e leva a sério a santidade de seu Senhor.
-
Proteger a pureza da Igreja. Como o apóstolo Paulo adverte, "um pouco de fermento leveda toda a massa" (1 Coríntios 5:6). Permitir que o pecado se espalhe sem correção contamina toda a comunidade, levando outros ao erro e corrompendo o corpo de Cristo.
-
Levar o pecador ao arrependimento. O objetivo final da disciplina, mesmo na sua forma mais severa (a excomunhão), é a restauração. Ao ser removido da comunhão, o pecador obstinado pode ser levado a reconhecer a gravidade de seu pecado e a se arrepender, para que "o espírito seja salvo no Dia do Senhor Jesus" (1 Coríntios 5:5).
Assim, a disciplina não é uma opção, mas uma parte vital do cuidado pastoral. Negligenciá-la não é um ato de "graça", mas de irresponsabilidade, que põe em risco a honra de Cristo, a saúde da Igreja e a própria alma do pecador.
Aplicação
-
Quando a disciplina for aplicada, apoie-a com o espírito certo: Se sua igreja tomar a difícil decisão de disciplinar um membro, sua atitude não deve ser de fofoca ou julgamento, mas de tristeza e oração, desejando ardentemente a restauração daquela pessoa.
-
Submeta-se humildemente à disciplina: Se você for o objeto da disciplina, resista à tentação do orgulho e da autodefesa. Receba a correção como um ato de amor de Deus e de sua comunidade, projetado para o seu bem espiritual.
-
Participe do processo de forma redentora: A disciplina começa com a confrontação pessoal (Mateus 18:15). Se um irmão pecar contra você, sua primeira responsabilidade não é contar para outros, mas ir procurá-lo em particular, com o objetivo de "ganhar seu irmão".
3. A disciplina é exercida por um conselho, não por um indivíduo
Como deve ser administrada a disciplina? A prática da Igreja Primitiva, baseada na Escritura, nos ensina duas verdades fundamentais sobre o exercício dessa autoridade.
Primeiro, a jurisdição da Igreja é puramente espiritual, e deve ser mantida separada do poder temporal ou civil. A Igreja não usa a espada, a prisão ou multas para impor sua vontade. Sua "arma" mais poderosa é a Palavra de Deus, e sua pena mais severa é a excomunhão.
O poder da Igreja busca um castigo voluntário que demonstre arrependimento, enquanto o poder civil pode coagir e punir o malfeitor contra a sua vontade.
Segundo, essa autoridade não deve estar nas mãos de uma única pessoa, mas deve residir em um conselho de anciãos (presbíteros). Na Igreja Primitiva, a disciplina era administrada pelo conselho de presbíteros, que eram como o senado da igreja.
O antigo líder Cipriano afirmava: "Desde que fui feito bispo, determinei não fazer coisa alguma sem o conselho dos presbíteros e sem o consentimento do povo". Isso evita que a disciplina se torne um capricho tirânico de um único líder e garante que as decisões sejam tomadas com sabedoria e prestação de contas.
Infelizmente, com o tempo, essa instituição degenerou. O bispo usurpou a autoridade do conselho, e depois, considerando a disciplina uma tarefa indigna, delegou-a a "oficiais" que transformaram o tribunal espiritual da Igreja em um fórum de litígios por questões terrenas, como dinheiro e propriedades.
Assim, o que era para ser um ministério de restauração de almas se tornou uma lamentável fonte de poder e lucro.
Aplicação
-
Procure uma igreja com liderança plural: Uma das marcas de uma igreja saudável é a liderança exercida por um conselho de presbíteros, e não por um pastor que governa sozinho. A liderança plural oferece proteção contra abusos de poder.
-
Respeite a separação entre Igreja e Estado: A Igreja não deve tentar usar o poder do Estado para impor sua agenda, nem o Estado deve interferir na disciplina espiritual interna da Igreja. Ambas as esferas de autoridade foram instituídas por Deus e devem ser respeitadas em seus próprios domínios.
-
Cuidado com a manipulação espiritual: Esteja atento a qualquer líder que use a ameaça de punição espiritual (como "maldições" ou exclusão) para obter ganho financeiro ou controle sobre a vida das pessoas. Isso é um abuso do poder das chaves e uma marca da tirania, não do pastoreio.
Conclusão
A jurisdição e a disciplina eclesiástica são um presente de Cristo à Sua Igreja. Longe de ser um sistema opressivo de regras, é a maneira ordenada por Ele para proteger Sua honra, preservar a pureza de Seu povo e buscar amorosamente a restauração daqueles que se desviam.
Aprendemos que a autoridade da disciplina flui do poder das chaves, que é exercida de forma distinta, mas complementar, pela pregação da Palavra e pela administração da disciplina. Seu propósito é sempre redentor e protetor.
E sua prática deve ser espiritual e colegiada, exercida por um conselho de líderes, e não pela vontade arbitrária de um único homem.
Quando a Igreja negligencia a disciplina, ela se torna vulnerável à corrupção e perde seu testemunho. Quando ela abusa da disciplina, transforma-se em uma tirania que fere as almas.
O caminho da sabedoria é abraçar a disciplina como Cristo a instituiu: uma expressão do Seu cuidado pastoral, administrada com humildade, sabedoria e um profundo desejo pela santidade de Sua amada Noiva.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro IV - Capítulo XI - "A jurisdição da Igreja e os abusos da mesma no papado"
Lista de estudos da série
1. A Mãe Espiritual: Por que um cristão não pode crescer sem a Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. O DNA da Verdade: As marcas infalíveis da Igreja verdadeira – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. Vasos de Barro: Por que Deus usa líderes humanos e imperfeitos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Espelho do Passado: Lições da liderança e generosidade na Igreja Primitiva – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. O Ministério em Ruínas: Quando o serviço se transforma em busca por poder – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. Um Trono Vazio na Terra: Por que a Igreja tem uma única Cabeça, Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. A Sombra do Poder: Como a ambição corrompeu a liderança da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. Edificar ou Destruir: Os limites da autoridade na Igreja de Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Voz no Concílio: A verdadeira autoridade das assembleias da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. Um Rei para a Consciência: A liberdade do crente diante das regras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. A Disciplina do Amor: As chaves que protegem e restauram a Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. O Jardim de Deus: Como a disciplina cultiva a saúde da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. A Armadilha da Piedade: As promessas que agradam a Deus e as que escravizam – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. A Graça Visível: Por que Deus nos deu os sacramentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Selo do Perdão: O significado profundo do batismo cristão – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. O Abraço da Aliança: Por que batizamos as crianças dos crentes – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. O Banquete do Rei: A Ceia do Senhor como alimento para a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas
18. Um Sacrifício, Uma Mesa: A Ceia como memorial, não como repetição – Estudo Bíblico sobre as Institutas
19. A Simplicidade de Cristo: Os dois sacramentos em contraste com invenções humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas