Qualquer organização, para funcionar bem, precisa de uma estrutura de liderança. Em uma empresa, há um presidente; em um país, um governante. É natural para nós buscar um ponto de referência, uma autoridade final que possa manter a ordem e a unidade.
Por isso, quando olhamos para a Igreja espalhada por todo o mundo, a pergunta surge quase que instintivamente: não precisamos de uma cabeça visível na terra, um líder supremo para evitar que tudo se fragmente em caos?
Essa é a premissa central sobre a qual se assenta toda a estrutura do papado: a crença de que o bispo de Roma é, por direito divino, o sucessor do apóstolo Pedro e a cabeça de toda a Igreja.
Para muitos, a obediência a esta figura é o principal e quase único vínculo que garante a unidade e a autenticidade da fé cristã.
No último estudo, vimos como a tirania e a corrupção podem destruir a antiga forma de governo da Igreja. A partir de agora, vamos examinar a origem e o crescimento da própria "cabeça" dessa tirania: o papado.
A questão não é apenas histórica, mas profundamente teológica e prática. A unidade da Igreja depende de uma hierarquia humana com um líder supremo, ou a verdadeira unidade flui de uma fonte completamente diferente?
Vamos comparar as reivindicações de Roma com o testemunho da história e, acima de tudo, com a Palavra de Deus.
1. Nos concílios antigos, o bispo de Roma era um irmão, não um soberano
Se o primado do bispo de Roma fosse uma instituição divina, esperaríamos encontrá-lo em pleno exercício desde os primeiros dias da Igreja, especialmente nos momentos mais importantes, como os grandes concílios ecumênicos. No entanto, o que a história nos mostra é exatamente o contrário.
No famoso Concílio de Niceia (325 d.C.), o primeiro grande ajuntamento de bispos de todo o mundo, não foi o bispo de Roma quem presidiu. Os seus representantes, de fato, foram sentados no quarto lugar, uma posição impensável se ele fosse reconhecido como a cabeça de toda a Igreja.
O concílio, longe de dar a Roma autoridade sobre todos, simplesmente confirmou sua supervisão sobre as igrejas de sua própria região, da mesma forma que outros patriarcas, como o de Alexandria, tinham sobre as suas.
Nos concílios seguintes, a história se repete. Em Éfeso, o bispo de Roma, Celestino, pediu a Cirilo, bispo de Alexandria, que o representasse, e os seus próprios legados tiveram uma posição inferior.
No Concílio de Calcedônia (451 d.C.), os legados do Papa Leão presidiram, mas o próprio Leão confessou em suas cartas que isso foi um privilégio especial concedido pelo imperador por uma necessidade específica daquele momento, e não um direito inerente ao seu ofício.
Em outros concílios importantes, como o de Aquileia, presidido por Ambrósio, ou o de Cartago, presidido por Aurélio, o bispo de Roma nem sequer esteve presente ou seus representantes ocuparam uma posição secundária.
A história da Igreja primitiva nos mostra uma comunhão de igrejas onde o bispo de Roma era honrado por sua localização na capital do Império, mas era tratado como um igual, um "irmão" e "companheiro", como o antigo bispo Cipriano o chamava. Ele estava sujeito à correção de outros bispos e não possuía autoridade para impor sua vontade sobre os demais.
Aplicação
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A verdadeira unidade é baseada na fé, não em uma figura humana: A Igreja primitiva encontrava sua unidade na fé comum em Cristo e na doutrina dos apóstolos, não na submissão a um único bispo. Valorize a unidade doutrinária baseada nas Escrituras acima de qualquer lealdade institucional.
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A autoridade na igreja deve ser compartilhada e humilde: O modelo antigo era de liderança colegiada. Nossos líderes devem se ver como irmãos e companheiros no serviço, não como uma hierarquia de poder. Jesus disse: "O maior entre vós seja como o menor; e aquele que dirige seja como o que serve" (Lucas 22:26).
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Cuidado com a arrogância dos títulos: A história do papado começa com a busca por títulos e honras. Oremos para que nossos líderes se contentem com o simples nome de "servo", "pastor" e "irmão", rejeitando qualquer título que os eleve indevidamente acima do rebanho de Deus.
2. O poder papal cresceu por ambição e oportunismo, não por ordem divina
Se o papado não foi instituído por Cristo nem praticado pela Igreja primitiva, como ele se tornou tão poderoso?
A história revela um crescimento gradual, impulsionado mais pela ambição humana e por circunstâncias políticas do que por qualquer mandato divino. Três causas principais contribuíram para a ascensão de Roma.
Primeiro, a reputação da cidade de Roma. Por ser a capital do Império, a igreja ali estabelecida naturalmente ganhou grande crédito e autoridade. Acreditava-se que ali haveria homens mais sábios e experientes, e a nobreza da cidade conferia prestígio à sua igreja.
Segundo, Roma tornou-se um santuário para os oprimidos. Quando bispos fiéis como Atanásio eram perseguidos e expulsos de suas igrejas no Oriente pela heresia ariana, eles encontravam refúgio e apoio em Roma.
Isso fez com que, por gratidão, as igrejas do Oriente atribuíssem grande honra e deferência a Roma, vendo-a como uma defensora da ortodoxia.
Terceiro, e de forma mais perniciosa, Roma tornou-se um refúgio para os culpados. Presbíteros e bispos que eram corretamente condenados por seus pecados em suas próprias províncias começaram a apelar para Roma como um último recurso.
Os bispos de Roma, ávidos por aumentar sua influência, estavam mais do que dispostos a intervir em assuntos de igrejas distantes, muitas vezes desconsiderando os julgamentos locais.
Essa ambição levou os concílios africanos, com a participação de Agostinho, a proibirem, sob pena de excomunhão, qualquer apelo a uma autoridade "do outro lado do mar", numa clara repreensão à usurpação de poder por parte de Roma.
Aplicação
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Discernir entre influência legítima e poder ilegítimo: Uma igreja ou líder pode ter grande influência por sua sabedoria, fidelidade e serviço. Isso é bom. O problema começa quando essa influência se transforma em uma reivindicação de poder e jurisdição sobre os outros, algo que o Novo Testamento nunca endossa.
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A autoridade da igreja é local: O modelo bíblico e da Igreja primitiva é que a disciplina e o governo são exercidos localmente, pela própria congregação e seus presbíteros. Devemos resistir a qualquer tentativa de uma autoridade externa de anular as decisões de uma igreja local saudável.
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A história da Igreja é um aviso contra a ambição: A ascensão do papado nos ensina que a busca por poder, mesmo que comece com boas intenções, pode corromper a Igreja. Oremos para que Deus nos guarde e a nossos líderes da sutil tentação da ambição.
3. O Anticristo profetizado que se assenta no templo de Deus
Esta é uma afirmação forte e chocante para muitos, mas é a conclusão lógica e bíblica de um sistema que usurpa o lugar de Cristo. O apóstolo Paulo, em 2 Tessalonicenses, nos dá o principal indício para reconhecer o Anticristo.
2 Tessalonicenses 2:3-4
... se não vier primeiro a apostasia e for revelado o homem da iniquidade, o filho da perdição, o qual se opõe e se levanta contra tudo que se chama Deus ou é objeto de culto, a ponto de assentar-se no santuário de Deus, ostentando-se como se fosse o próprio Deus.
Note os elementos-chave: a tirania do Anticristo não é primariamente política, mas espiritual, contra as almas.
Ele não suprime o nome de Cristo, mas se esconde sob o título de Igreja, sentando-se no "santuário de Deus". Sua marca principal é a soberba, que o leva a roubar a glória que pertence exclusivamente a Deus e a Cristo.
Quando vemos o papado reivindicando títulos que pertencem apenas a Cristo (Cabeça da Igreja), apropriando-se de um poder que pertence apenas a Deus (o poder de julgar a todos sem ser julgado por ninguém), e colocando suas próprias tradições e decretos acima da Palavra de Deus, não há outra conclusão possível.
Aplicação
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Nossa lealdade final é a Cristo, não a uma instituição: Nenhuma igreja, denominação ou líder humano pode exigir uma lealdade que pertence somente a Cristo. Quando uma instituição exige obediência em oposição à Palavra de Deus, nosso dever é obedecer a Deus e não aos homens.
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A apostasia começa por dentro: A maior ameaça à Igreja raramente vem de fora, mas da corrupção interna. Precisamos estar constantemente vigilantes para que o "mistério da iniquidade" não opere em nossas próprias comunidades, através da soberba e da busca pelo poder.
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O Evangelho é nossa única segurança: Em meio a um mundo de engano religioso, nossa única âncora é o puro Evangelho de Cristo. Onde Cristo é exaltado, onde a Sua Palavra é a autoridade final, ali encontramos segurança e vida, não importa quão humilde seja a aparência da igreja.
Conclusão
A jornada pela história do papado é um lembrete solene de como a ambição humana pode corromper a instituição divina da Igreja. Vimos que, nos primeiros séculos, o bispo de Roma era um irmão entre iguais, não um soberano.
Seu poder cresceu através da política e do oportunismo, não de um mandato de Cristo. E, finalmente, vimos que este sistema culminou em uma tirania que usurpa a autoridade e a glória de Cristo, tornando-se o cumprimento da profecia sobre o Anticristo no templo de Deus.
Reconhecer a natureza do papado nos liberta para abraçar a verdadeira unidade da Igreja, que não está em uma estrutura terrena, mas em nossa união comum com nossa única Cabeça, o Senhor Jesus Cristo.
A verdade do Evangelho nos liberta para servir a Cristo como nosso único Rei.
Que possamos, portanto, rejeitar com firmeza qualquer sistema que coloque um homem no lugar de Cristo e nos apegar com alegria à simplicidade do governo que Ele estabeleceu: um governo de servos, sob a autoridade de Sua Palavra, unidos sob a Sua única e gloriosa soberania.
Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro IV - Capítulo VII - "A Origem e o Crescimento do Papado: Como a Liberdade da Igreja Foi Oprimida e a Justiça Confundida"
Lista de estudos da série
1. A Mãe Espiritual: Por que um cristão não pode crescer sem a Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas2. O DNA da Verdade: As marcas infalíveis da Igreja verdadeira – Estudo Bíblico sobre as Institutas
3. Vasos de Barro: Por que Deus usa líderes humanos e imperfeitos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
4. O Espelho do Passado: Lições da liderança e generosidade na Igreja Primitiva – Estudo Bíblico sobre as Institutas
5. O Ministério em Ruínas: Quando o serviço se transforma em busca por poder – Estudo Bíblico sobre as Institutas
6. Um Trono Vazio na Terra: Por que a Igreja tem uma única Cabeça, Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
7. A Sombra do Poder: Como a ambição corrompeu a liderança da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas
8. Edificar ou Destruir: Os limites da autoridade na Igreja de Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas
9. A Voz no Concílio: A verdadeira autoridade das assembleias da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas
10. Um Rei para a Consciência: A liberdade do crente diante das regras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas
11. A Disciplina do Amor: As chaves que protegem e restauram a Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas
12. O Jardim de Deus: Como a disciplina cultiva a saúde da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas
13. A Armadilha da Piedade: As promessas que agradam a Deus e as que escravizam – Estudo Bíblico sobre as Institutas
14. A Graça Visível: Por que Deus nos deu os sacramentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas
15. O Selo do Perdão: O significado profundo do batismo cristão – Estudo Bíblico sobre as Institutas
16. O Abraço da Aliança: Por que batizamos as crianças dos crentes – Estudo Bíblico sobre as Institutas
17. O Banquete do Rei: A Ceia do Senhor como alimento para a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas
18. Um Sacrifício, Uma Mesa: A Ceia como memorial, não como repetição – Estudo Bíblico sobre as Institutas
19. A Simplicidade de Cristo: Os dois sacramentos em contraste com invenções humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas