A Armadilha da Piedade: As promessas que agradam a Deus e as que escravizam – Estudo Bíblico sobre as Institutas

Quem nunca fez uma promessa? No início de um novo ano, prometemos ser mais saudáveis. Para alguém que amamos, prometemos estar sempre ao lado. Fazer promessas faz parte da nossa vida. 

E, naturalmente, levamos esse hábito para o nosso relacionamento com Deus. Queremos demonstrar nossa gratidão ou nosso arrependimento fazendo um voto, uma promessa especial a Ele.

Esse desejo, muitas vezes, nasce de um coração sincero. No entanto, a história da Igreja nos mostra um lado triste: essa mesma prática, quando feita sem sabedoria, se transformou em uma fonte de angústia e tirania espiritual. 

A liberdade que Cristo comprou com Seu sangue foi, muitas vezes, trocada por uma infinidade de regras e tradições humanas que aprisionaram as pessoas em vez de libertá-las.

Muitos cristãos, querendo agradar a Deus, acabaram inventando seus próprios fardos, criando obrigações que o próprio Deus nunca pediu. Eles cavaram poços de regras onde acabaram se afogando em culpa e ansiedade.

Isso nos leva a uma pergunta fundamental: como podemos saber se uma promessa ou voto que fazemos a Deus é saudável e agradável a Ele? 

Como podemos ter certeza de que estamos expressando nossa devoção em vez de cair em uma armadilha de legalismo e superstição?

Vamos explorar, à luz da Palavra, os princípios que nos ajudam a discernir entre as promessas que Deus abençoa e as invenções humanas que Ele rejeita.

1. Deus se agrada de obediência, não de invenções humanas

O primeiro princípio que precisamos ter em mente é que tudo o que Deus requer de nós para uma vida santa e piedosa já está revelado em Sua Lei e em Sua Palavra. 

Ele nos deu um caminho claro a seguir. O Senhor resumiu toda a justiça na simples obediência à Sua vontade.

Se isso é verdade, então qualquer culto ou prática que inventamos por nossa própria conta para tentar “merecer” algo de Deus, por mais que pareça bom aos nossos olhos, não é aceitável para Ele. 

Na verdade, as Escrituras mostram que Deus não apenas rejeita, mas detesta esses "cultos voluntários".

Pense nas advertências do profeta Isaías ou do apóstolo Paulo. Eles constantemente confrontaram pessoas que trocavam os mandamentos claros de Deus por tradições e regras criadas por homens. Deus mesmo diz:

Isaías 29:13
"Este povo se aproxima de mim com a sua boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim. A sua adoração para comigo é baseada em regras ensinadas por homens."

Portanto, a questão sobre os votos que fazemos fora da Palavra de Deus se torna clara. 

Se um voto é uma invenção nossa, uma regra que nós mesmos criamos, ele não tem valor diante de Deus e não deve prender a nossa consciência.

Aplicação

  • Examine suas práticas espirituais. Você está seguindo certas regras ou disciplinas por que elas estão na Bíblia e te ajudam a amar a Deus e ao próximo, ou por que são uma tradição que te faz sentir "mais espiritual"?

  • Cuidado com o "cristianismo plus". É fácil cair na armadilha de pensar que a obediência simples aos mandamentos de Cristo não é suficiente. Cuidado para não adicionar fardos à sua vida ou à vida de outros que o próprio Jesus não colocou.

  • Simplifique sua devoção. Em vez de inventar novas promessas, concentre-se em obedecer aos mandamentos claros de Jesus: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. É aí que reside a verdadeira espiritualidade.

2. Um voto legítimo começa com a Palavra de Deus

Se não quisermos errar ao fazer um voto, precisamos considerar três coisas: a quem estamos fazendo o voto, quem somos nós que fazemos o voto, e qual é a nossa intenção.

Primeiro, e mais importante, estamos lidando com Deus. Ele não aceita qualquer coisa. Ele se agrada da nossa obediência aos Seus caminhos. Portanto, um voto só pode ser agradável a Ele se estiver alinhado com a Sua Palavra. Não podemos ousar prometer a Deus algo que não temos certeza de que Lhe agrada.

A fé é a raiz de tudo o que fazemos para Deus. Paulo nos ensina que "tudo o que não provém de fé é pecado" (Romanos 14:23). 

Isso se aplica de forma especial quando nos dirigimos diretamente a Deus. Se vamos fazer uma promessa a Ele, nossa consciência precisa estar iluminada pela Palavra, segura de que não estamos agindo de forma precipitada ou tola.

Antes de fazer um voto, a primeira pergunta deve ser: "Isto está de acordo com a vontade revelada de Deus? Tenho alguma base bíblica para acreditar que esta promessa honra a Deus?". Se a resposta for "não" ou "não sei", o caminho mais seguro é não fazer o voto.

Aplicação

  • Faça da Bíblia o seu filtro. Antes de fazer uma promessa a Deus (ex: nunca mais comer certo alimento, ou fazer uma peregrinação), pergunte-se: "Onde a Bíblia ensina que isso é um ato de adoração que agrada a Deus?".

  • Diferencie entre sabedoria e superstição. É sábio decidir evitar certos lugares ou hábitos que te levam a pecar. Mas é supersticioso transformar essa decisão em um voto sagrado, como se o ato de evitar algo tivesse um poder espiritual em si mesmo.

  • Busque conselho. Se você está pensando em fazer um voto importante, converse com um pastor ou um irmão maduro na fé. Eles podem ajudá-lo a ver se sua promessa está alinhada com a Palavra ou se é fruto de um impulso momentâneo.

3. Um voto legítimo respeita os dons que Deus nos deu

A segunda consideração é sobre nós mesmos. Precisamos medir nossas forças, considerar nossa vocação e não desprezar a liberdade que Deus nos deu. 

Quem faz um voto sobre algo que não está em seu poder cumprir, ou que vai contra o chamado de Deus para sua vida, age de forma imprudente e ingrata.

Não se trata de confiar em nossa própria força, pois sabemos que tudo o que oferecemos a Deus é dom que Dele recebemos. 

Trata-se de reconhecer os limites que Ele mesmo nos deu. Deus distribui Seus dons com sabedoria. A cada um, como diz Paulo, é dada a graça "segundo a medida do dom de Cristo" (Efésios 4:7).

O exemplo mais claro disso é o voto de celibato. Muitos clérigos e freiras, esquecendo sua fraqueza humana, confiam que podem permanecer castos por toda a vida. 

Mas Deus nos ensina que o dom da continência não é para todos (Mateus 19:11). Tentar forçar a natureza e desprezar o remédio do casamento que Deus oferece é tentar a Deus.

O mesmo vale para nossa vocação. Um pai de família não pode fazer um voto de abandonar sua esposa e filhos para viver uma vida reclusa. 

Alguém com dons para governar não pode fazer um voto de se retirar da sociedade. Um voto nunca deve nos impedir de cumprir as obrigações que Deus já colocou diante de nós.

Aplicação

  • Seja honesto sobre suas fraquezas. Não prometa a Deus algo que você sabe que é uma luta constante e quase insuperável para você. É mais sábio pedir a ajuda de Deus a cada dia do que fazer um voto que provavelmente será quebrado, gerando mais culpa.

  • Avalie seus dons. Se Deus não lhe deu o dom da continência, não faça um voto de celibato. Honre a Deus dentro do casamento. Se Deus não lhe deu o dom da pobreza, não faça um voto de miséria. Honre a Deus administrando bem os recursos que Ele lhe confiou.

  • Não deixe que um voto atrapalhe sua vocação. Sua promessa a Deus deve ajudá-lo a ser um melhor pai, mãe, profissional ou membro da igreja, e não o contrário. Um voto que te isola de suas responsabilidades é quase sempre um voto ilegítimo.

4. Um voto legítimo tem a intenção de nos aproximar de Deus

Finalmente, a intenção por trás do voto é crucial. Deus olha para o coração. A mesma atitude exterior pode ser agradável ou detestável para Ele, dependendo da motivação.

Podemos identificar algumas intenções legítimas para fazer um voto. Algumas se referem ao passado e outras ao futuro.

Em relação ao passado, um voto pode ser um ato de gratidão. Assim como Jacó prometeu o dízimo se Deus o guardasse em sua jornada (Gênesis 28:20-22), podemos prometer uma oferta especial a Deus como um memorial solene por nos livrar de uma doença ou perigo. 

Também pode ser um ato de penitência, onde, por um tempo, nos privamos de algo para nos lembrar da seriedade de um pecado que cometemos.

Em relação ao futuro, um voto pode nos ajudar a sermos mais cuidadosos. Se você percebe que um certo vício sempre o derruba, pode ser útil fazer um voto de se abster de algo relacionado a ele por um tempo. 

O voto se torna um exercício para fortalecer sua disciplina. Também pode ser um meio de nos incentivar a cumprir nossos deveres quando somos negligentes, como uma auto-exortação.

Em todos esses casos, o voto não é o fim, mas um meio. Ele é uma ferramenta, um exercício, uma ajuda. Seu valor não está no ato em si, mas no propósito de nos treinar na piedade.

Aplicação

  • Transforme sua gratidão em ação. Após uma grande bênção ou livramento, em vez de fazer promessas que talvez não consiga cumprir, que tal fazer um "voto" de servir em um ministério por um tempo, ou de ofertar generosamente para uma causa missionária?

  • Use promessas como ferramentas de disciplina. Se você luta com o tempo gasto nas redes sociais, pode fazer um "voto" pessoal de ficar uma semana sem elas para se dedicar mais à oração e leitura. O objetivo não é o ato de não usar, mas o de se aproximar de Deus.

  • Cuidado com o orgulho. A intenção de um voto nunca deve ser a de se mostrar mais santo que os outros. Um voto legítimo é um exercício humilde entre você e Deus.

5. O nosso maior voto já foi feito no batismo

Por fim, é crucial lembrar que existe um voto que é comum a todos os cristãos, o mais importante de todos: o voto que fazemos em nosso batismo

Ali, e confirmado cada vez que participamos da Ceia, nós prometemos obediência a Deus, renunciando a Satanás e aos desejos da nossa carne para viver sob o senhorio de Cristo.

Este é o grande e fundamental voto. Ele é santo, bom e exigido de todos os filhos de Deus. Qualquer outro voto particular que façamos é secundário e só tem valor se nos ajudar a cumprir este primeiro e maior compromisso.

A beleza deste voto é que ele está inserido na aliança da graça. Sabemos que falharemos em nossa obediência, mas nossa promessa a Deus está ligada à promessa Dele para nós: a do perdão dos pecados e da ajuda do Espírito Santo para nos levantar e nos fortalecer.

Não precisamos inventar um "segundo cristianismo" ou uma vida "mais perfeita" através de votos monásticos ou outras regras. A vida cristã comum, vivida em obediência à Palavra no poder do Espírito, já é o mais alto chamado que existe.

Aplicação

  • Concentre-se no seu primeiro voto. Em vez de se sobrecarregar com novas promessas, dedique sua energia a viver o que você prometeu em seu batismo: seguir a Jesus.

  • Lembre-se da graça. Quando você falhar, não se desespere. O seu voto batismal não se baseia na sua perfeição, mas na perfeição de Cristo. Corra para Ele em arrependimento e fé, e encontre o perdão.

  • Renove seu compromisso diariamente. Cada manhã é uma oportunidade de renovar seu voto principal, dizendo: "Hoje, Senhor, com a ajuda do Teu Espírito, eu quero viver para Ti". Essa é a promessa mais importante que você pode fazer.

Conclusão

A liberdade cristã é um tesouro precioso. Fomos libertados da escravidão do pecado e também da escravidão de regras humanas que prometem uma espiritualidade superior, mas que só produzem culpa.

Um voto legítimo, feito com sabedoria, pode ser uma ferramenta útil em nossa caminhada. Mas ele deve sempre ser bíblico, realista, bem-intencionado e, acima de tudo, servir para nos ajudar a cumprir o grande compromisso que todos nós, como cristãos, já assumimos: viver para a glória de Deus.

Se você se sente preso por promessas feitas na ignorância ou por superstição, saiba que Deus não se agrada delas.

Um voto que não vem da fé é pecado, e continuá-lo também é. Em Cristo, você está livre para abandonar esses fardos e abraçar a simples e profunda alegria de obedecer à Sua Palavra.

Estudo Bíblico adaptado das Institutas da Religião Cristã - João Calvino / Livro IV - Capítulo XIII - "Os votos: a temeridade com que são feitos no papado para escravizar miseravelmente as almas"


Lista de estudos da série

1. A Mãe Espiritual: Por que um cristão não pode crescer sem a Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

2. O DNA da Verdade: As marcas infalíveis da Igreja verdadeira – Estudo Bíblico sobre as Institutas

3. Vasos de Barro: Por que Deus usa líderes humanos e imperfeitos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

4. O Espelho do Passado: Lições da liderança e generosidade na Igreja Primitiva – Estudo Bíblico sobre as Institutas

5. O Ministério em Ruínas: Quando o serviço se transforma em busca por poder – Estudo Bíblico sobre as Institutas

6. Um Trono Vazio na Terra: Por que a Igreja tem uma única Cabeça, Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

7. A Sombra do Poder: Como a ambição corrompeu a liderança da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

8. Edificar ou Destruir: Os limites da autoridade na Igreja de Cristo – Estudo Bíblico sobre as Institutas

9. A Voz no Concílio: A verdadeira autoridade das assembleias da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

10. Um Rei para a Consciência: A liberdade do crente diante das regras humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas

11. A Disciplina do Amor: As chaves que protegem e restauram a Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

12. O Jardim de Deus: Como a disciplina cultiva a saúde da Igreja – Estudo Bíblico sobre as Institutas

13. A Armadilha da Piedade: As promessas que agradam a Deus e as que escravizam – Estudo Bíblico sobre as Institutas

14. A Graça Visível: Por que Deus nos deu os sacramentos – Estudo Bíblico sobre as Institutas

15. O Selo do Perdão: O significado profundo do batismo cristão – Estudo Bíblico sobre as Institutas

16. O Abraço da Aliança: Por que batizamos as crianças dos crentes – Estudo Bíblico sobre as Institutas

17. O Banquete do Rei: A Ceia do Senhor como alimento para a alma – Estudo Bíblico sobre as Institutas

18. Um Sacrifício, Uma Mesa: A Ceia como memorial, não como repetição – Estudo Bíblico sobre as Institutas

19. A Simplicidade de Cristo: Os dois sacramentos em contraste com invenções humanas – Estudo Bíblico sobre as Institutas

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