A tendência de ser indefinido, que muitos chamam de ser “pós-moderno”, tem permeado o âmbito acadêmico. Na universidade, as críticas contra quem se enxerga detentor da verdade são as mais duras, principalmente nas ciências “humanas”.
Não estamos criticando as opiniões contrárias e a consideração de dados aparentemente conflitantes antes de se chegar a uma conclusão. Olhar os dois ou mais lados de uma pesquisa é acadêmico e não está em julgamento.
Falamos, porém, da danosa tendência de considerar acadêmico quem traz mais questionamentos do que soluções.
Na pós-graduação, ainda mais do que na graduação, o chique é fazer algumas “provocações”, como se diz por aí. Isto é, quebrar paradigmas, questionar o que se julgava certo, romper tradições, isso parece ser o que move a academia.
O movimento denominado “igreja emergente” (estudado na lição 3) trouxe ao cenário eclesiástico essa tendência de ser indefinido. Os analistas desse movimento dizem que é difícil defini-lo devido à enorme diversidade entre seus proponentes.
Uns são teologicamente abertos e dispostos a abrir mão de doutrinas tradicionais, enquanto outros estão tentando preservar o cerne da fé evangélica. Isto faz com que o movimento seja teologicamente indefinido. Um dos seus maiores líderes, Rob Bell, ilustrou essa indefinição quando, em entrevista, ele respondeu a quase todas as perguntas com perguntas.
Ele se esquivava de afirmar categoricamente em que cria, e sua tendência era dizer: “será que é assim mesmo?”.
Entretanto, não é só a tendência “pós-moderna” dentro da igreja que traz indefinição teológica. A marca das igrejas pentecostais e neopentecostais é a ausência de confissões. Quando elas possuem algum documento com pontos doutrinários, estes são muito abrangentes e exercem pouca autoridade sobre o ensino da igreja.
Há igrejas evangélicas que não se preocupam em manter uma única linha de ensino. Até o protestantismo tradicional, com igrejas que chegaram ao Brasil no século 19, tem esquecido sua herança teológica e feito pouquíssimo uso dos documentos confessionais. Isso gera igrejas com membros que pensam muito distintamente.
Precisamos de mais definições de fé. Precisamos resgatar o valor dos credos e das confissões a fim de que as igrejas evangélicas sejam menos diversificadas no que é essencial.
Para isso, estudaremos a Bíblia e a história da igreja a fim de entendermos a necessidade de a igreja ser confessional. Iremos também ponderar sobre o papel das confissões em nossas igrejas, que autoridade elas devem ter.
I. O QUE A BÍBLIA DIZ SOBRE CONFESSAR A FÉ?
Paulo explicita a necessidade de verbalizarmos nossa confissão (Rm 10.9-10). Onde há fé é preciso que ela seja professada. Jesus espera que cada um o confesse publicamente (Mt 10.32-33; Lc 12.8-9).
O relato de Lucas 12 afirma que isso deve ser feito, inclusive, diante de autoridades (Lc 12.11-12). Pedro mostrou tal ousadia quando professou diante das autoridades judaicas a salvação em Jesus somente (At 4.1-20).
Porém, Pedro sabia que confessar a fé não envolvia somente a ousadia de fazer isso publicamente. O nosso texto base afirma a necessidade de uma confissão ser precisa em suas afirmativas teológicas.
Jesus levanta a pergunta mais importante para a nossa salvação; uma pergunta que define a identidade do nazareno (Mt 16.13).
Jesus não era ignorante quanto à opinião de outros, mas queria levar os discípulos a ponderar sobre as percepções populares acerca dele. Ele não estava perguntando sobre o que a oposição pensava dele (Mt 10.25; 12.24). Ele queria a opinião dos que se mostravam favoráveis ao seu ministério.
Diante dos milagres e ensinamentos de Jesus, alguns julgavam que ele era uma reencarnação de João Batista (veja Mt 14.1-2). Outros achavam que Jesus seria um retorno de Elias, conforme a profecia de Malaquias (4.5).
Não, simplesmente alguém que operasse no poder de Elias, como João Batista (Lc 1.17), mas o próprio Elias. Um terceiro grupo atribuía a Jesus o título de algum outro grande profeta, como Jeremias.
Essas três opiniões, porém, atribuíam a Jesus somente o status de precursor do Messias. Então vem a pergunta aos discípulos: “Mas vós... quem dizeis que eu sou?”.
Essa pergunta era importante não só diante das opiniões de outros, mas porque discípulos fiéis tinham duvidado (Mt 11.1-3) e até mesmo os doze já tinham manifestado uma “pequena fé” (Mt 8.26; 14.31; 16.8).
Foi então que Pedro, com a impetuosidade que lhe era própria (Mt 15.15; 19.27), falou em nome do grupo:
Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. (Mt 16.16)
Pedro acreditava em Jesus como o tão esperado Messias. Essa confissão foi tão precisa e distinta da opinião de outros interessados em Jesus que ele disse que o homem Pedro não poderia ter chegado a essa conclusão sozinho. Foi obra extraordinária do Pai.
Essa passagem não é a única a destacar a importância de professarmos nossa fé de maneira precisa. O Novo Testamento demonstra essa preocupação com uma fé correta. A confissão “Jesus é Senhor” é antiga e definidora (1Co 12.3).
Com o advento de problemas teológicos — o legalismo judaico, a heresia de Colossos, o proto-gnosticismo combatido por João — confissões mais elaboradas tiveram de surgir (1Co 15.3-4; Fp 2.5-11; Cl 1.13-20; 1Tm 3.16; 1jo 4.1-3). Não basta simplesmente ter fé, é preciso expressá-la (corpo de doutrinas) corretamente.
A conversa de Jesus com Nicodemos ilustra isso (veja Jo 2.23—3.17). Diante de muitos que criam, mas não de modo a entender, Jesus confronta Nicodemos quanto à maneira de entrarmos no reino, a obra do Espírito, a missão de Cristo, etc. Jesus expressou a Nicodemos a importância de crer corretamente. Por isso, somos exortados a lutar pela fé e guardá-la (Fp 1.27; 2Tm 4.7; Jd 3).
É claro que ortodoxia somente não define uma boa confissão. Além de conteúdo, nossa confissão precisa ser acompanhada de confiança. Ela vai além do racional (crer que) para o volitivo (crer em). Qualquer profissão de fé genuína deve ser seguida com lealdade.
Quando Jesus ensinou duras verdades a ponto de muitos discípulos já não mais o seguirem, ele desafiou os discípulos a se posicionarem; Pedro respondeu com uma confissão — “Tu tens as palavras de vida eterna e nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus” — afiada a uma expressão de lealdade — “Senhor, para quem iremos?” (veja Jo 6.66-69).
É como se Pedro estivesse dizendo: “Senhor, não vamos a lugar nenhum; ficamos com o Senhor”. Afinal, não há salvação em nenhum outro nome, como o próprio Pedro testemunhou (At 4.12).
II. A CONFESSIONALIDADE NO DECORRER DA HISTÓRIA
A história da igreja atesta que os cristãos compreenderam o quão importante era estabelecer fórmulas e credos que resumissem a fé. Nos primeiros séculos, essas fórmulas permaneceram apenas na mente dos cristãos, por causa da perseguição. Após surgir uma maior tolerância para com o cristianismo, eles passaram a redigir credos para que fossem transmitidos às gerações sem qualquer deturpação.
No início da igreja cristã, os credos eram basicamente usados de quatro maneiras. Em primeiro lugar eles foram compostos como formas de profissão de fé para o batismo.
O conteúdo dessa profissão pública assegurava que o “batizando” estava em conformidade com a fé comunitária. Em segundo lugar, visando à confissão batismal, os credos passaram a servir como roteiro para a instrução catequética na doutrina cristã.
Em outras palavras, eles serviram de orientação prévia ao batismo, como currículo da classe de catecúmenos ou novos crentes.
Em terceiro lugar, devido ao surto de heresias, os credos passaram a ser a medida de ortodoxia doutrinária.
A palavra “ortodoxia” significa “sustentar a opinião correta” (ortos, certo e doxa, opinião). Em último lugar, os credos ganharam caráter litúrgico. Eles eram lidos durante a liturgia de um culto como expressão da fé comunitária, como resposta à revelação divina em sua Palavra.
Nos séculos 16 e 17, um dos legados da Reforma Protestante foi a produção de confissões e catecismos. Enquanto o primeiro tipo reúne afirmações que são divididas em parágrafos e capítulos, o segundo tipo é estruturado com perguntas e respostas.
O retorno à Bíblia, imortalizado no lema Sola Scriptura, não fez os reformadores desprezarem as confissões escritas. Ao contrário, tais documentos trouxeram ao menos dois benefícios significativos para o movimento. Primeiro, eles marcavam a identidade de uma igreja.
Numa época em que regiões e nações ganhavam sua independência do catolicismo romano, as igrejas nacionais produziam documentos com características próprias, embora semelhantes nos pontos essenciais da fé reformada.
Sendo assim, cada jurisdição política escrevia uma confissão distinta: Primeira e Segunda Confissões Helvéticas (1536 e 1566), atual Suíça, Confissão Galicana (1559) na França, Confissão Escocesa (1560), Confissão Belga (1561) nos Países Baixos, Os Trinta e Nove Artigos da Inglaterra (1571), Os Artigos Irlandeses (1615), etc.
Em segundo lugar, eles providenciaram uma regra hermenêutica, isto é, um referencial interpretativo para entender as Escrituras. Como a mera crença na Bíblia não define as diferenças entre grupos da cristandade — católicos também afirmam crer na Bíblia —, as confissões funcionam como um padrão que diferencia a boa da má interpretação bíblica.
III. A CONFESSIONALIDADE EM NOSSOS DIAS
Já vimos que as confissões auxiliam a identificar de uma igreja ou denominação. Elas promovem clareza na identidade de um grupo. Um documento confessional produz distinção com uns, comunhão com outros, e delimita o que julga ser ortodoxo na esfera da fé. Tal documento pode servir de bússola para as pessoas desorientadas em meio a uma igreja evangélica tão confusa no Brasil.
Há igrejas, por exemplo, que ouvem mais seus líderes do que os documentos redigidos para nortear a denominação. Os líderes acabam tendo mais participação na identidade de uma igreja, isso gera muita diversidade. Há igrejas de uma mesma denominação que são muito diferentes umas das outras em matéria de fé e prática. Isso mostra um esvaziamento da identidade confessional.
Vimos também que diante das deturpações, uma confissão funciona como princípio hermenêutico das Escrituras. Ela nos ajuda a definir a ortodoxia de uma interpretação bíblica. A confissão, contudo, nunca está acima da Bíblia, como referencial para julgá-la.
Ela é uma sistematização bíblica de nossas crenças e doutrinas, a fim de nos nortear no estudo da própria Escritura. Temos necessidade, em nossos dias, de que mais pessoas tenham uma boa sistematização da fé em sua mente, para não serem levadas de um lado para outro por qualquer vento de doutrina (Ef 4.14).
Podemos resumir a necessidade das confissões em três palavras que são características marcantes da igreja: testemunho, unidade e pureza.
As confissões são testemunho porque servem como expressão concatenada de nossa fé. Dizer que o que nós cremos está na Bíblia não oferece às pessoas um resumo da fé. Os catecismos e as confissões, por outro lado, proporcionam essa sinopse.
Em segundo lugar, os documentos confessionais também cooperam para a unidade da igreja. Contrária à opinião moderna de que doutrina divide, de que confissões são elementos mais de divisão do que promotores de unidade, a experiência nos mostra como a fé é a base da união entre pessoas.
Quando encontramos discípulos de Jesus em lugares distantes de onde vivemos, sentimo-nos especialmente ligados a essas pessoas. Se a missão de vida, a visão do reino e a teologia são semelhantes, a ligação é ainda mais forte. Precisamos resgatar esse conceito de que as confissões são a base da união entre as igrejas.
Em terceiro lugar, as confissões contribuem para a pureza da igreja. Se, por um lado, queremos unidade com quem pensa de igual modo, certamente queremos nos distinguir de quem pensa de modo diferente. Isso não significa que não possamos ter comunhão com cristãos que pensam diferente de nós com relação a doutrinas não essenciais para a salvação.
Tais diferenças, embora não impossibilitem comunhão entre crentes de diferentes igrejas, não devem estar presentes no ministério de pregação e ensino de uma igreja.
IV. QUE AUTORIDADE DEVEM TER AS CONFISSÕES?
A autoridade de credos e confissões surge a partir do momento em que um grupo de crentes os subscreve. Para os protestantes, a autoridade dos símbolos de fé é relativa (ou derivada) e limitada, sempre subordinada à Bíblia, que tem autoridade divina e absoluta. A Bíblia é norma normans (uma regra que regula), enquanto a confissão é norma normata (uma regra que é regulada).
A igreja romana concede autoridade maior aos símbolos (bulas papais e documentos conciliares), pois esses são a interpretação infalível da igreja (clero) quanto à Bíblia.
A posição dos protestantes dá abertura para a revisão de documentos de autoridade, o que não é o caso dos católicos. O protestante entende que seu princípio hermenêutico precisa ser constantemente avaliado pela própria Escritura.
A história da tradição reformada mostra que esse não é um conceito apenas teórico, como se os reformados sempre tivessem medo de mudar algo na confissão. O Sínodo de Dort fez modificações na Confissão Belga; a Igreja Presbiteriana nos EUA fez modificações na Confissão de Fé de Westminster.
Talvez o assunto mais delicado em igrejas tradicionalmente confessionais seja o grau de sua subscrição. A subscrição mais aberta de alguns protestantes torna a confissão mera referência histórica, perdendo, assim, qualquer caráter normativo.
Todavia, a subscrição mais restrita, ainda que pareça causar divisão, permite que a denominação tenha um referencial hermenêutico para tratar de seus problemas doutrinários e práticos. Temos de evitar os extremos de divinização ou rejeição dos credos e confissões.
CONCLUSÃO
O protestante precisa valorizar suas tradições, quando e se elas combinam com as Escrituras. Precisamos valorizar nossas raízes históricas. Isto nos distinguirá do restante dos ramos evangélicos no Brasil, os quais são ignorantes quanto à tradição cristã.
Também nos posicionará corajosamente no período em que vivemos: de alta indefinição teológica e de privatização das convicções.
APLICAÇÃO
Para igrejas que já adotam alguma confissão, é importante doutriná-las com aulas de escola dominical sobre o documento, com transcrição de pequenas porções no boletim da igreja e, quem sabe, até com a leitura de parte deles em cultos e reuniões.
Para igrejas que não adotam nenhuma confissão, seria interessante estudar as confissões produzidas pelos protestantes nos séculos 16 e 17. Esses documentos contêm uma riqueza de profundidade teológica.