O veneno sutil: Como identificar e combater a influência do mundo na fé – Estudo Bíblico sobre a Igreja Secularizada

Falar de “igreja secularizada” já implica um rótulo negativo que a maioria dos cristãos está pronta a criticar. 

O processo de secularização é logo identificado como “amor ao mundo”, o que é claramente proibido nas Escrituras, pois é contrário ao amor a Deus (1Jo 2.15). Portanto, os secularizados são tidos por mundanos. Isso é verdadeiro.

Porém, secularização é um processo mais abrangente do que muitos cristãos enxergam. Parte dessa cegueira se deve a um entendimento muito limitado do que seja mundano. 

Há muitos que definem mundanismo como um conjunto de atividades que se pratica fora da igreja (certos jogos, danças e artes). 

Porém, mundanismo não é composto apenas de certas atividades culturais, mas principalmente da corrupção delas. Não podemos ter uma visão fragmentada da ética, que divide a vida em praticar coisas ruins ou coisas boas (sagrado e secular).

Albert Wolters escreve:

Essa divisão em compartimentos é um grande erro, pois sugere que não há ‘mundanismo’ na igreja, por exemplo, e que não há santidade na política ou, digamos, no jornalismo. Ela define o que é secular não pela sua orientação religiosa ou direção (obediência ou desobediência às ordenanças de Deus), mas pelo lugar criacional que ocupa.

(A criação restaurada, Albert Wolters, Cultura Cristã)

Wolters está advertindo contra o pensamento de que uma igreja secularizada é aquela composta de pessoas que praticam muitas coisas “mundanas” fora da igreja. Essa é uma visão muito míope do processo de secularização, que não o enxerga acontecendo na própria igreja.

Precisamos redefinir mundanismo para enxergar o quanto ele adentra nossas igrejas. A secularização também acontece enquanto praticamos atividades consideradas religiosas (culto, cânticos, planejamento para a igreja, etc.). Isso significa que a secularização é um problema dentro da igreja.

I. UMA FALSA DICOTOMIA

Diante das ameaças de tornarem-se mundanas, algumas igrejas evangélicas no Brasil têm procurado se distanciar de atividades ou entretenimentos “seculares”, criando substitutos com o rótulo “gospel”: em vez de deixar o jovem cristão participar de festas mundanas, criam-se festas semelhantes, mas tocando “funk evangélico”; incentiva-se a assistir filmes evangélicos e a ouvir rádios evangélicas; os adolescentes são direcionados ao grupo de “skatistas de Cristo” e as senhoras são encorajadas a criar um “crochê para Jesus” e um livro cristão de receitas. Poderíamos denominar isso de separatismo

Quando cristãos organizam grupos paralelos de atividades semelhantes, eles acabam se distanciando de atividades mundanas. O argumento em prol do separatismo é a promoção da santidade, e o argumento contra é a falta de engajamento com o mundo. Essa é uma discussão antiga no cristianismo.

O que, aparentemente, não é discutido, mas assumido como verdadeiro, é que o separatismo e o mundanismo são polos opostos no que tange ao relacionamento do cristão com a cultura.

Michael Horton chama nossa atenção para o fato de que o oposto de secularismo não é se separar do mundo.

É bem possível ser totalmente corrompido pelo mundanismo até mesmo quando estamos enfurnados no gueto cristão. Nossa música, literatura, escolas, rádio, televisão e igrejas cristãs podem se tornar portadores do vírus do mundanismo, sem que tenhamos de nos incomodar com o mundo.

(O cristão e a cultura, Cultura Cristã)

Em outras palavras, separatismo e mundanismo não são erros extremos os quais ou você cai em um, ou em outro; é possível ser separatista e, ao mesmo tempo, mundano.

Isso significa que podemos ser totalmente secularizados, ainda que debaixo do formato evangélico. Isso vale tanto para atividades eclesiásticas (sermões psicologizados, marketing na igreja) quanto para atividades do dia a dia. 

A realização de um culto, quando alguém se muda para um apartamento recém-adquirido ou quando um cristão abre uma loja e busca “consagrá-la” podem ser exemplos de secularização. O culto, por si só, não torna o lugar santificado ou dedicado a Deus. 

É a santidade contínua na vida do lar, ou nos negócios, que torna o ambiente do apartamento, e da loja, santos (1Co 7.14).

II. SECULARISMO: UM PROBLEMA ANTIGO

A história do Livro dos Juízes é um exemplo de como o secularismo foi trazido para dentro do povo de Deus. Não se tratava de um período em que os desafios estivessem ao seu redor (como no livro de Josué), mas dentro de seu próprio território. 

Após a morte de Josué, Israel ficou sem um líder nacional durante cerca de 300 anos (período do Livro dos Juízes). 

Os juízes eram apenas líderes locais — alguns regiam simultaneamente em diferentes locais da nação. Essa diferença política gera um contraste notório entre o Livro de Josué e o Livro de Juízes.

Enquanto o Livro de Josué diz respeito à conquista de Canaã, Juízes lida com o mau uso que Israel fez com aquilo que Deus conquistara para eles (cf. Dt 7.1-5). 

Josué é sobre a fidelidade de Deus; Juízes é sobre a infidelidade de Israel. Deus havia dito ao seu povo que a conquista da terra seria gradual (Ex 23.27-30), e o Livro de Josué mostra como ainda havia terra a ser conquistada (cf. Js 18.1-3). 

Já o Livro de Juízes primeiro apresenta como Israel acomodou os cananeus entre eles, ao sujeitá-los a trabalhos forçados (Jz 1.27-36), e depois a maneira como eles negaram sua fé ao servir outros deuses (2.11-23; 3.5-7). Em outras palavras, eles deixaram o que havia de mundano dentro da terra que passaram a possuir e misturaram isso à fé de Israel. 

Esse sincretismo é semelhante à secularização moderna.

A razão por terem perdido o controle da terra que Deus lhes dera para conquistar foi eles terem se voltado para outros deuses. Em outras palavras, a falha política de consumar a conquista da terra e obter controle sobre ela está intimamente relacionada ao declínio religioso de Israel. 

A primeira seção do prólogo (1.1—2.5) apresenta as questões políticas e a segunda parte do prólogo (2.6—3.6) introduz a entrada na idolatria.

É claro que a questão política é apenas a ocasião do erro. O cerne do problema no Livro de Juízes é o ciclo de pecado. Seis vezes a expressão “os israelitas fizeram o que era mau aos olhos do Senhor” introduz os grandes períodos de opressão no livro (3.7,12; 4.1; 6.1; 10.6; 13.1).

Esses períodos refletem o mesmo ciclo de reincidência na idolatria; ruína causada por alguma nação vizinha; retorno a Deus, implorando por livramento; resgate de Deus, por intermédio de um juiz; e um período de repouso durante a vida desse juiz. 

Nesse sentido, nosso texto básico é uma amostra genérica do que acontece em todo o livro: pecado reincidente (2.11-13,19); castigo divino (2.14-15); os “gemidos” do povo (2.18b); o livramento por juízes (2.16); e a consequente bonança (2.18a). Sempre que morre o juiz, parece surgir uma geração que não conheceu o que Deus fez por intermédio daquele juiz (cf. 2.10).

Essa doentia amnésia espiritual mostra que os juízes foram bem-sucedidos politicamente, mas não espiritualmente (2.17). Eles conseguiam livrar Israel de seus inimigos, mas não conseguiam livrar Israel do próprio Israel e sua idolatria (Handbook on the Historical Books, Victor Hamilton, Baker).

Diante da idolatria de Israel, o texto enfatiza que o povo foi colocado sob “prova” (2.22; 3.1,4), e ele foi reprovado, dando exemplo de secularização (3.5-6). 

Se, por um lado, o povo de Deus no período dos juízes tinha mais condições de se manter puro do que no tempo de Josué (os israelitas já estavam na terra e faltava pouco para conquistarem tudo), a história mostra que o pouco de mundanismo dentro da terra foi suficiente para corrompê-los. Não foi preciso sequer se preocupar com os inimigos em redor.

O Livro de Juízes é apenas um exemplo dentre tantos do Antigo Testamento no qual o povo de Deus continua a adorar ao Deus verdadeiro, só que com métodos e conteúdos seculares. Esse perigo recorrente deve nos alertar a adotar uma nova estratégia para combater a secularização da igreja.

III. MUDANÇA DE COSMOVISÃO

Abraham Kuyper foi um cristão holandês que se envolveu em várias áreas da sociedade: educação, jornalismo, política e teologia. Quando fundou uma universidade, criou um jornal ou organizou um partido político, ele não formou uma subcultura (ou gueto) “cristã”. Ele criou um segmento na cultura para expressar ideais cristãos em áreas não religiosas. 

Ele mostrou como era possível evitar a retirada pietista da sociedade e se envolver em diferentes áreas da cultura sem se tornar secularizado. Trata-se de estar no mundo, mas não ser do mundo, em vez de criar uma igreja do mundo, mas que não está no mundo (O cristão e a cultura, Horton, Cultura Cristã). 

“Enquanto a tendência medieval e, até certo ponto, pietista, é chamar o crente para fora do mundo e para dentro de atividades relacionadas à igreja, a abordagem reformada é ver todas as atividades relacionadas à igreja como estações de ‘reabastecimento’ para o serviço verdadeiro que se faz dentro do mundo (O cristão e a cultura, Horton, Cultura Cristã).

Essa atitude de Kuyper é uma herança da Reforma Protestante, como nos mostra Henry Van Til:

A Reforma Protestante não apenas buscou purificar a igreja e livrá-la dos erros doutrinários, como também buscou a restauração da integralidade da vida (...) Para os reformadores, o natural era tão santo quanto o espiritual, e a obra do Pai na criação era considerada de igual significação à do Filho na redenção (...) De fato, levavam o pecado mais a sério do que a Igreja medieval, crendo que o homem integral tinha sido corrompido pela queda e que o mundo estava sob maldição por causa do pecado. No entanto, não cometeram o engano de condenar as coisas naturais como se fossem profanas; eles criam na restauração, na purificação e na consagração do natural.

(O conceito calvinista de cultura, Cultura Cristã)

Essa atitude de não considerar as atividades seculares como sendo mundanas foi uma mudança de paradigma. Ao invés de nos separarmos do que é secular, devemos santificar o secular.

Outro paradigma, porém, menos ponderado pelos crentes, é a afirmação de que “a vida inteira do crente é um culto a Deus”.

Esse paradigma, embora contendo verdades, ofusca a separação do que é próprio de cada esfera. A igreja não é um lugar para trazer o que é próprio da esfera secular. Um exemplo disso acontece no cenário da música evangélica. 

No passado havia músicos que compunham tanto peças seculares como sagradas, entendendo que cada uma ocupava o seu lugar. 

Hoje, porém, vemos as músicas que não são nem sagradas, nem seculares, mas uma fusão de ambas. Uma música religiosa demais para não ser tocada em estações de rádio seculares, mas carente de profundidade teológica para ser usada no culto. 

“Se cristãos se sentissem em liberdade de escrever canções de amor seculares (focalizando o horizontal) para estações seculares, e escrevessem também música sacra para a igreja, com profundidade lírica e grandeza musical (focalizando na relação vertical com Deus), talvez pudéssemos ver a aurora de um novo tempo de grande música, produzida por cristãos, em ambas as esferas” (O cristão e a cultura, Horton, Cultura Cristã).

CONCLUSÃO

Vimos como o processo de secularização atinge até os evangélicos mais separatistas em nosso país. Diante do desafio de uma igreja moderna tão secularizada, devemos estar dispostos a repensar nossa leitura do mundo e a maneira de testemunharmos a Cristo em várias áreas do viver.

APLICAÇÃO

Olhe para sua vida e avalie se de algum modo você tem se moldado a este mundo. Lembre-se de que se quisermos ver uma transformação da cultura, temos que primeiramente olhar para a igreja. É preciso abandonar toda prática que se oponha ao santo evangelho e, ao mesmo tempo, recuperar a pureza da doutrina e da vida, que sempre teve uma influência transformadora no mundo.


Lista de estudos da série

1. A prova de fogo: Como a fé cristã floresce em meio à perseguição – Estudo Bíblico sobre a Igreja Perseguida

Semeando Vida

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