Não tenha medo: Como ler o livro da Revelação corretamente – Estudo Bíblico sobre a Introdução ao Apocalipse

Você que tem lido a Bíblia, com certeza já observou que, nas Escrituras, encontram-se diferentes tipos de textos. Em outras palavras: os textos bíblicos são escritos de várias formas.

Há, por exemplo, textos de narrativa (como Gênesis, Êxodo, os livros de Samuel, Reis, Crônicas etc), textos poéticos (como Salmos, Provérbios, e boa parte dos livros que chamamos de proféticos, como Isaías, Miquéias etc).

Você já observou que um evangelho é diferente de uma epístola, e que um Salmo é diferente de uma narrativa. Quem quer fazer uma boa interpretação da Bíblia precisa prestar atenção a essas diferenças.

As duas formas básicas nas quais os textos bíblicos são escritos apresentam, ainda, diferentes gêneros literários. Por isso, encontramos na Bíblia leis, genealogias, lamentações, profecias, poesias didáticas, hinos etc. Cada gênero literário apresenta a mesma verdade, embora de maneiras diferentes.

Mas há um gênero em especial que se destaca. É o gênero que está mais presente no último livro da Bíblia, o Apocalipse de João. Este gênero é chamado apocalíptico.

Neste estudo, abordaremos uma introdução à literatura conhecida como apocalíptica, para auxiliar você no entendimento do livro que fecha a revelação escrita de Deus.

1. O que é literatura apocalíptica

Literatura apocalíptica é um gênero literário que floresceu entre os judeus no período que vai, aproximadamente, do ano 200 a.C. a 100 d.C.

Portanto, era muito conhecido de todas as igrejas do Novo Testamento. Foi uma literatura produzida em um ambiente de perseguição e opressão de todo tipo. Seu principal objetivo era dar aos fiéis esperança em Deus.

O Apocalipse de João, como bom exemplo de literatura apocalíptica é, antes de mais nada, um livro pastoral por excelência. Foi escrito para dar coragem e consolação aos cristãos perseguidos, muito provavelmente na década de 90 do primeiro século.

Domiciano, imperador romano, estava promovendo uma perseguição intensa contra os cristãos em toda a extensão do império. Ele exigia que todos, em toda parte, o adorassem. Alguns chegaram a pensar que Domiciano era o imperador Nero (que havia morrido uns 30 anos antes) redivivo.

Os cristãos viviam tempos difíceis. O policiamento do Estado romano era severo naqueles dias contra os que se recusassem a adorar o imperador.

Muitos livros foram escritos nesta perspectiva no mundo antigo. Estudiosos bíblicos reconhecem que há trechos de literatura apocalíptica em Daniel, Isaías, Zacarias, e, como não poderia deixar de ser, no Apocalipse de João.

A literatura apocalíptica faz amplo uso de uma linguagem figurada e simbólica, que seria facilmente entendida por seus destinatários. É o que se encontra com abundância no Apocalipse de João. No entanto, há diferenças tremendas entre o Apocalipse de João e outros apocalipses escritos naquela época.

Uma delas era que, seus autores, querendo dar a impressão de antiguidade aos seus textos, usavam pseudônimos, nomes de personagens famosos da antiguidade, como Enoque ou Abraão.

De maneira diferente, o autor do Apocalipse cristão se identifica como sendo João (Ap 1.1,4; 22.8), que estava exilado na ilha de Patmos "por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus" (Ap 1.9).

Não é um herói do passado; antes, é um "companheiro da tribulação" do presente. Outra diferença básica é que o Apocalipse de João exalta a pessoa de Jesus Cristo, o que não acontece nos apocalipses judaicos.

É bem verdade que houve, posteriormente, outros apocalipses escritos por cristãos, mas que não passavam de cópias grosseiras do Apocalipse de João.

2. O uso da linguagem figurada e simbólica

Uma das características mais marcantes da literatura apocalíptica, em geral, e do Apocalipse de João, em particular, é o uso de linguagem figurada e simbólica. Aliás, em nosso dia a dia, utilizamos, com frequência, uma linguagem assim.

Por isso, falamos, por exemplo, que alguém "morreu de rir", ou que um amigo pede a outro que "quebre um galho", ou que um casal tem uma viagem de "lua de mel".

Sabemos que essas expressões indicam a verdade, mas não devem ser interpretadas literalmente. O mesmo processo acontece no Apocalipse de João. Muitas expressões utilizadas são bem estranhas, se quisermos interpretá-las em termos literais.

O melhor é entendê-las como devem ser entendidas: como símbolos, que apontam para uma realidade.

Alguns são interpretados no próprio texto: os sete candeeiros de ouro que João vê (1.12) são símbolos das sete igrejas que recebem a mensagem do livro (1.20). O Cordeiro (5.6,8,12,13; 6.1,7,12 etc.) é claramente símbolo de Jesus.

O linho finíssimo com que a esposa do Cordeiro se veste simboliza os atos de justiça dos santos (19.7,8). Outros símbolos, que não são explicados no texto devem ser interpretados com prudência, à luz de um conhecimento da literatura bíblica.

Ainda, com respeito à linguagem figurada do Apocalipse de João, é preciso falar sobre os números. Há amplo uso de um simbolismo numérico no livro. Essa é uma característica da literatura apocalíptica. Em alguns comentários do Apocalipse, esses números (como os 144.000, de 14.1, e os 1.000 anos, de 20.1-6) são interpretados de modo literal.

O grande problema é que as interpretações literais acabam forçando João a dizer o que ele nunca pretendeu. A tabela  seguir apresenta um auxílio no entendimento destes números. 

NÚMEROS PASSAGENS SIGNIFICADOS
4 7.1 🧭 O mundo (símbolo dos quatro cantos da terra: norte, sul, leste e oeste).
6 (666) 13.18 ⛓️ Sete menos um. Algo imperfeito. Símbolo da limitação humana. 666 é símbolo daquilo que jamais chegará a ser sete.
42 meses, 1260 dias, 3 anos e meio 12.6 ⏳ Metade de sete. Simboliza imperfeição, sofrimento, perseguição, provação.
7 1.20; 5.1; 8.6; 15.1 👑 Perfeição. Algo pleno, completo, acabado etc.
12 21.12, 14, 16, 21 📜 Israel, o povo de Deus, na antiga e na nova aliança.
24 4.4 🤝 Junção das tribos do Israel antigo e os apóstolos de Jesus. Símbolo da unidade do povo de Deus.
1.000 20.1-7 🗓️ Grande quantidade. Indica um grande período de tempo, não necessariamente mil anos literais.
144.000 7.4; 14.1 👥 O número total de todos os salvos por Jesus, que, evidentemente, é muito superior a 144.000.

Há, também, um simbolismo de cores (6.1-8), em que, por exemplo, o vermelho simboliza assassinato, violência; o amarelo simboliza a morte etc.

Finalmente, há um simbolismo de lugares (16.16) - o Armagedom não deve ser interpretado como um local literal, mas como símbolo de uma grande guerra contra Deus, travada sem sucesso pelos seguidores do diabo em todos os tempos.

3. Escolas de interpretação do apocalipse de João

Ao longo dos séculos, diferentes tentativas de interpretação do Apocalipse de João têm sido propostas. Três serão aqui descritas:

Preterista - A palavra "pretérito" significa "passado". A escola preterista é a que entende que tudo o que está no Apocalipse de João já se cumpriu, e serviu apenas para as igrejas que o receberam no século primeiro da era cristã. É claro que há muito no livro que realmente já se cumpriu.

Mas, se todo o livro foi escrito apenas para os cristãos do primeiro século, qual é o seu valor para os que viveram (e vivem) depois dessa época?

Futurista - Essa escola tem muitos adeptos em todo o mundo. Acredita que o Apocalipse é uma projeção de acontecimentos futuros. Muitas interpretações fantásticas e absurdas têm sido propostas pelos que defendem essa linha. Assim, por exemplo, dizia-se que a criação do Estado de Israel em 1948, a invasão do Afeganistão pela URSS em 1979 etc, eram sinais da proximidade do "fim".

Já se vão 50 anos desde que Israel foi organizado, o Afeganistão não está mais ocupado e a União Soviética não mais existe. E os que propuseram essas interpretações nem admitiram os seus erros.

A interpretação puramente futurista do Apocalipse de João cria o que os estudiosos reformados Gerrit Berkower e Herman Ridderbos criticavam, chamando de "escatologia de reportagem".

A "escatologia de reportagem" é uma abordagem muito popular em várias partes do mundo. Sua principal característica é querer encontrar nas manchetes dos noticiários, o que pensam ser confirmações de profecias.

Além do mais, se, como querem os futuristas, o Apocalipse foi escrito para dar uma descrição pormenorizada das "últimas coisas", qual foi o seu valor para as comunidades que o receberam no primeiro século?

Paralelismo - Essa é a interpretação proposta por William Hendriksen no seu comentário do Apocalipse, intitulado Mais que Vencedores (publicado no Brasil pela Casa Editora Presbiteriana).

Hendriksen defende que no Apocalipse há sete seções, paralelas uma à outra, cada uma apresentando o período completo da história da igreja, até à segunda vinda de Cristo, sendo que cada seção acrescenta algo que a anterior não disse. A interpretação proposta por Hendriksen é a que mais justiça faz ao texto bíblico.

4. Teologia do apocalipse de João

O último livro da Bíblia tem uma rica teologia. Em síntese, eis uma apresentação de alguns de seus principais temas teológicos:

O Testemunho - O próprio Senhor Jesus é apresentado como sendo a testemunha por excelência (1.5). Os seguidores de Jesus devem dar testemunho dele (1.2, 9), ainda que a preço de sangue (2.13; 6.9; 12.11). De fato, nas comunidades que receberam o livro, houve prisões (2.10) e muitos martírios (7.13,14; 16.6; 17.6; 18.24; 20.4 etc.).

Vale lembrar que, na língua grega, a palavra "testemunha" é a mesma palavra "mártir". Em um mundo que persegue, oprime e mata os seguidores de Jesus é importante lembrar a mensagem do Apocalipse, que garante vitória aos que são fiéis em seu testemunho.

A Liturgia - O Apocalipse é o livro do Novo Testamento que mais apresenta textos litúrgicos: 4.8-11; 5.9-14; 7.9-12; 11.15-18; 12.10-12; 15.3,4; 16.5-7; 19.1-10 etc. Um estudioso do assunto, Pierre Pringent, professor da Faculdade de Teologia Protestante de Estrasburgo, França, lembra que alguns trechos parecem um diálogo litúrgico entre um oficiante e uma comunidade que lhe responde.

O aspecto de culto a Deus no Apocalipse de João é importante por várias razões. Uma delas é a recusa dos cristãos a prestar culto ao imperador romano. Diante da exigência do culto ao imperador, os fiéis a Jesus insistem em adorar o Deus Criador e Justo, que fez, faz e fará justiça.

Não é sem razão que o Apocalipse tenha em seu final a oração frequentemente feita pela igreja primitiva: "Amém. Vem, Senhor Jesus"(22.20, cf. I Co 16.22).

O Apocalipse ensina que o culto a Deus não é uma fuga da realidade. Na verdade, é um momento todo especial, em que as comunidades se fortalecem e renovam sua disposição para dar testemunho de Jesus no mundo. Isso era importante para as igrejas da Ásia no século primeiro, e para todos os cristãos em qualquer tempo e lugar.

A Salvação - Humanamente falando, as igrejas às quais João enviou o Apocalipse estavam na pior situação possível. Mas a Palavra de Deus enviada àqueles cristãos proclama a salvação: 7.10; 12.10; 19.1. Essa mensagem de encorajamento e esperança serve como estímulo aos crentes perseguidos.

O Juízo - O juízo é o outro lado da salvação. O Deus que salva seu povo é o Deus que julga os rebeldes, os que se recusam a obedecê-lo. Seções inteiras do Apocalipse, como as trombetas e as taças, falam do juízo divino. Não se deve pensar em termos de um juízo que acontecerá apenas no futuro. Pois Deus já está exercendo na História seu juízo. Demonstra prudência quem se arrepende e se converte, quando discerne os juízos de Deus na História.

A Justiça - Com toda certeza, a justiça é um dos temas teológicos mais importantes das Escrituras. O Apocalipse de João não é exceção à essa regra. Nas páginas do livro não faltam referências à justiça que Deus fará: 6.10; 15.4; 16.7; 19.11 etc.

Essa mensagem era muito importante para as comunidades perseguidas pelo império romano (simbolizado nas monstruosas bestas do capítulo 13). Mas os fiéis seriam reavivados em sua esperança, com a mensagem que lembra que o Senhor do universo é o Deus da justiça.

Essa é uma das razões que explicam por que, nos últimos anos, o Apocalipse de João tem despertado muito interesse em diversos círculos de estudos bíblicos na América Latina. Em um continente marcado por opressão e injustiça, a mensagem da justiça de Deus na História é de fundamental importância.

A Soberania de Deus - Finalmente, essa lista sugestiva dos principais temas teológicos do último livro da Bíblia apresenta a soberania de Deus.

Não é, como poder-se-ia pensar, o diabo que está no controle da História: é Deus. Por isso, Deus é retratado no Apocalipse como estando assentado no trono (4.1-11; 5.1; 21.3 etc).

Na literatura apocalíptica, o trono é um símbolo de autoridade, domínio, comando e poder. O Senhor tem a vitória em suas mãos. Ele compartilha sua vitória com os que lhe são fiéis.

Ele é o que é, que era, e que há de vir (4.8), que está presente com seu povo, animando-o a prosseguir a caminhada da fé.

A mensagem do Apocalipse de João tem sido um poderoso instrumento de Deus para o encorajamento de seu povo. Que você e seu grupo de reflexão bíblica experimentem crescimento e maturidade com estes Estudos, pois "bem-aventurados aqueles que lêem e aque-les que ouvem as palavras da profecia e guardam as cousas nela escritas, pois o tempo está próximo (1.3).

Autor: Rev. Carlos Ribeiro Caldas Filho


Lista de estudos da série

1. Não tenha medo: Como ler o livro da Revelação corretamente – Estudo Bíblico sobre a Introdução ao Apocalipse

2. Mais que um profeta: A visão de Jesus que fortalece a esperança – Estudo Bíblico sobre Cristo em Apocalipse

3. Uma mensagem para hoje: O que Cristo diz à sua igreja – Estudo Bíblico sobre as Cartas às Sete Igrejas

4. Quem está no controle?: O governo soberano de Deus na História – Estudo Bíblico sobre o Trono Celestial

5. O mistério revelado: Por que só Jesus pode abrir o livro da História – Estudo Bíblico sobre o Livro e o Cordeiro

6. O mundo em crise: Entenda o significado dos cavaleiros do Apocalipse – Estudo Bíblico sobre os Sete Selos

7. O alerta divino: O que o som das trombetas anuncia ao mundo – Estudo Bíblico sobre as Sete Trombetas

8. Nossa maior tarefa: O papel da igreja em tempos de crise – Estudo Bíblico sobre a Missão do Povo de Deus

9. A guerra invisível: Entenda a vitória de Cristo sobre Satanás – Estudo Bíblico sobre a Mulher e o Dragão

10. Impérios vs. o Cordeiro: Identifique as forças que se opõem a Deus – Estudo Bíblico sobre as Duas Bestas

11. A ira do Cordeiro: A justiça final de Deus sobre a rebeldia – Estudo Bíblico sobre os Sete Flagelos

12. A queda inevitável: O fim de todo sistema que se opõe a Deus – Estudo Bíblico sobre a Queda da Babilônia

13. 1000 anos de paz?: O que a Bíblia realmente diz sobre o reinado de Cristo – Estudo Bíblico sobre o Milênio

14. O fim é apenas o começo: Descubra a promessa da vida eterna – Estudo Bíblico sobre Novo Céu e Nova Terra

Semeando Vida

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