Entre reis e mártires: A jornada turbulenta da Reforma na Inglaterra e Escócia – Estudo Bíblico sobre a Reforma Protestante

A Reforma na Inglaterra e na Escócia não teve um desenvolvimento linear e constante como aconteceu, por exemplo, na Alemanha e na Suíça. Um exemplo da singularidade do caso inglês é ilustrado pela dificuldade que historiadores e teólogos têm de definir o que é anglicanismo.

Encontramos, por um lado, a implantação do sistema presbiteriano na Escócia, por meio de John Knox. Por outro, temos os reformistas dentro da Igreja da Inglaterra que, se não foram bem-sucedidos do ponto de vista político-eclesiástico, desenvolveram grande riqueza teológica.

A apreciação da Reforma nessa região nos permite recordar um episódio bíblico semelhante: a pregação do evangelho na cidade de Corinto. Paulo enfrentou ali uma feroz perseguição. A coragem que o apóstolo demonstrou foi a mesma dos puritanos na Inglaterra e na Escócia.

1. "Não temas, pelo contrário, fala e não te cales"

Em Atos 17 a 19 somos informados acerca do ministério de Paulo em três das principais cidades da época; Atenas, Corinto e Éfeso. Ao deixar a capital grega, Paulo foi para a importante cidade de Corinto (18.1). Banhada pelos mares Egeu e Jônico, a posição geográfica fazia de Corinto um local estratégico. Comércio, esportes ("jogos ístmicos”), prostituição e religiosidade aqueciam o lugar. Ali o apóstolo se reuniu a Áquila e Priscila, fazendo tendas (v.2-3) e, aos sábados, na sinagoga, passou a pregar para judeus e gentios (v.5).

Quando Silas e Timóteo se juntaram a ele, Paulo se dedicou "totalmente à palavra, testemunhando aos judeus que o Cristo é Jesus" (v.5). Houve oposição e blasfêmia dos judeus (v.6).

Deixando a sinagoga, Paulo começou a pregar nos lares e para os gentios. Anunciando o nome de Jesus na casa de Tício Justo (v.7), Crispo, o principal da sinagoga, foi alcançado e “creu no Senhor". Ele, sua família e muitos coríntios (v.8).

Paulo, que em outros momentos já tinha experimentado o ódio dos líderes judeus, angustiou-se e ficou preocupado com o que poderia acontecer. Anos depois, ele relataria aos crentes de Corinto o seu estado nessa ocasião: “... foi em fraqueza, temor e grande tremor que eu estive entre vós” (ICo 2.3).

A luz desse testemunho, entendemos melhor o motivo da visão na qual o Senhor lhe disse: "Não temas; pelo contrário, fala e não te cales; porquanto eu estou contigo, e ninguém ousará fazer-te mal, pois tenho muito povo nessa cidade” (At 18.9-10). Reanimado e fortalecido, ele permaneceu dezoito meses ali ensinando a palavra de Deus (v.l 1).

Em algum momento durante esses dezoito meses, os judeus, que já tinham perturbado antes (At 18.6), se levantaram contra Paulo e o levaram ao tribunal, acusando-o de persuadir “os homens a adorar a Deus por modo contrário à lei” (v.l 3). Expulsos dali pelo procônsul Gálio, transtornados, eles agarraram e espancaram Sóstenes (v.l 6- 17). Mesmo depois disso, o apóstolo permaneceu ali muitos dias (v.l 8). De fato, a promessa divina foi cumprida: a integridade física de Paulo foi preservada (v.10). E o evangelho foi anunciado, apesar da oposição.

2. A reforma na Inglaterra

Na Inglaterra “desde o século 14, surgiu uma tradição de profundo apreço pelas Escrituras e, com base nelas, o questionamento de dogmas e práticas da igreja medieval. Começou com o ‘pré-reformador' João Wycliffe (1320-1384) e os seus seguidores, os lolardos".

Isso nos ajuda a entender o porquê da existência na Inglaterra de reformadores evangélicos já nas décadas de 1520 e 1530, homens “que não se viam como 'protestantes' do ponto de vista da confissão, mas antes, como 'católicos' que acreditavam que sua igreja exigia reforma e renovação interior".

No aspecto político, o fortalecimento dos Estados Nacionais enfraqueceu a força de Roma e do seu chefe, o Papa, em nações como a Alemanha, a França e a Inglaterra. Vale lembrar que no começo do século 16 a Inglaterra abrangia também a Irlanda e o País de Gales.

Portanto, nas chamadas Ilhas Britânicas, apenas a vizinha Escócia era independente. Outro fator que não pode ser descartado tem que ver com a disseminação de novas ideias, propulsionada pela prensa de tipos móveis, inventada por Gutenberg (1398— 1468).

Havia plenas condições para que a Reforma se desenvolvesse na Inglaterra como aconteceu em outros países. No entanto, o desejo do rei Henrique VIII (1491-1547) de se divorciar de Catarina de Aragão, fez com que o terreno fosse semeado não por questões teológicas, mas políticas.

Sucedendo seu pai no trono inglês, Henrique VIII foi rei de 1509 até sua morte (1547). Dois fatos marcam a história desse monarca: seus seis casamentos e o desligamento da Inglaterra de Roma, originando, assim, a Igreja Anglicana — a expressão inglesa do catolicismo, sob a liderança de um monarca e não de um reformador.

Dois meses após assumir o trono, ele se casara com Catarina de Aragão. O casamento selava a aliança política entre ingleses e espanhóis. Henrique e Catarina tiveram apenas uma filha, Maria. Preocupado em assegurar uma transição tranquila de poder após a sua morte, e também desgostoso com o imperador romano-germânico Carlos V, Henrique pediu ao Papa Clemente VII que anulasse seu casamento com Catarina de Aragão. No entanto, antes de fazer o pedido, ele e Ana Bolena (1501-1536) já estavam envolvidos.

Como Roma estava sob o domínio de Carlos V, tio de Catarina, Clemente VII não atendeu seu pedido e o alertou quanto à excomunhão. Henrique não deu ouvidos ao Papa e, através do novo arcebispo de Cantuária, Thomas Cranmer, conseguiu a anulação de seu casamento e legalização de seu novo consórcio com Ana Bolena — o que foi confirmado pela corte inglesa. Catarina foi despojada e Ana coroada.

O Papa o excomungou. Nessa conjuntura, em 1534, o rei decretou o Ato de Supremacia Inglesa, declarando-se “Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra”. Aqueles que discordaram da decisão real foram executados. Além de cortar as relações com Roma, tornando a igreja inglesa autônoma, os mosteiros foram fechados e todas as propriedades da Igreja Católica confiscadas.

Separado do catolicismo, em nenhum momento Henrique teve interesse de adotar o luteranismo ou o zuinglianismo como religião do país, mesmo que por volta de 1536 ele tenha demonstrado alguma simpatia para com ideias luteranas. Uma evidência de seu desinteresse pela Reforma foi a morte de William Tyndale (1490-1536), autor de importante tradução da Escritura para o inglês. Morto o monarca, uma nova fase se iniciou no país.

Outro reinado marcante foi o de Maria Tudor, católica fervorosa, filha de Catarina de Aragão. Maria se tornou rainha da Inglaterra e empreendeu medidas para restaurar o catolicismo. Em 1554, ela conseguiu que o Parlamento anulasse toda legislação religiosa aprovada depois de 1529. Instauraram-se perseguições a todos que se declarassem protestantes ou que recusassem acatar as decisões.

Mais de trezentos líderes protestantes e centenas de fiéis perderam a vida, lares foram destruídos e o país conheceu o horror da perseguição. Maria se tornou impopular e entrou para a História como “a sanguinária”.

Após a morte de Maria, em novembro de 1558, ocupou o trono sua meia irmã Elisabete (1533-1603). Mudança de rainha e de religião. Elisabete era filha de Henrique e Ana Bolena, a mulher por causa de quem Catarina de Aragão havia sido preterida. Seu reinado de 45 anos ficaria conhecido como período elisabetano, e coincidiu com o teatro de William Shakespeare (1564-1616).

Diante da instabilidade político-religiosa na qual a Inglaterra se encontrava, Elisabete conseguiu implantar um certo grau de união em um país profundamente dividido. Seu prestígio pessoal fez com que ela conseguisse governar o país e estabelecer a paz religiosa. De fato, a rainha demonstrou grande capacidade política e diplomática, uma vez que ao longo do seu reinado teve que lidar com as reivindicações daqueles que exigiam a reforma completa da igreja, os puritanos.

3. O puritanismo

O puritanismo é a expressão inglesa do calvinismo. Seus partidários "foram os calvinistas da Inglaterra e posteriormente das colônias inglesas da América do Norte, nos séculos 16 e 17, ou seja, no período da ortodoxia reformada”.

Mas, antes de se consolidar como movimento, foi "uma mentalidade ou atitude religiosa que começou cedo na história da Inglaterra". O ambiente no qual os puritanos reivindicaram seus ideais, o seio da Igreja na Inglaterra, foi o mesmo que assistira a emergência de João Wycliffe e os lolardos no século 14 e de uma geração de líderes evangélico-protestantes na primeira metade do século 16.

Como fenômeno histórico, e datado, suas origens se encontram no reinado de Eduardo VI (1547-1558), “quando a tradição, reformada começou a exercer maior influência na Inglaterra. Nessa época, os reformadores continentais Martin Bucer e Jan Laski residiram no país”.

Por ocasião do governo de Maria (1553-1558), na luta por sobrevivência, somente nos primeiros anos, perto de oitocentas pessoas fugiram para o continente em busca de refúgio. Parte desses exilados se alojou em Genebra. Com a morte da rainha católica, houve o regresso de muitos que tinham deixado a ilha.

Alguns desses, imbuídos da teologia calvinista, lançaram-se ao esforço de reformar a igreja inglesa e a igreja escocesa. A bíblia de Genebra (1560) foi publicada nesse contexto. Para eles, uma igreja mais pura significava uma igreja mais bíblica, isenta de todos os resquícios do 'papismo', como bispos, cerimônias elaboradas, vestes litúrgicas, incenso, altares, genuflexões e outras práticas.

O puritanismo se transformou em uma tradição inglesa. Ao longo dos séculos eles se espalharam nas Ilhas Britânicas e principalmente nas colônias da Nova Inglaterra (futuros EUA), conservando em seu interior facções com distintas posições sobre assuntos de doutrina e política.

Como outros movimentos ou tradições, o puritanismo escreveu lindas páginas na história da Reforma, mas algumas dessas páginas apresentam nódoas ou manchas. Alguns deles foram verdadeiros gigantes de Deus, a maioria sendo composta de cristãos sérios e devotados, mas também existiram alguns radicais e intolerantes.

4. A reforma na Escócia

Se na Inglaterra os puritanos não conseguiram mais do que erguer sua voz, no reino independente da Escócia eles conseguiram reformar a igreja. A principal razão dessa diferença de resultados tem a ver, inquestionavelmente, com a liderança do puritano João Knox (1514-1572).

Knox foi precedido por Patrick Hamilton (1504- 1528) e George Wishart (1513-1546), ambos executados pela tirania religiosa. Esse último influenciou fortemente Knox como mentor.

João Knox foi um homem preparado por Deus para mudar o rumo da Escócia. Sacerdote romano desde 1536, ele lutou para reformar o cristianismo em sua terra. Por conta de suas convicções e envolvimentos, em 1547, ele foi preso e lançado numa galé de escravos, onde amargou por dezenove meses. livre do cativeiro, exilou-se na vizinha Inglaterra que estava sob o regime protestante de Eduardo VI. Ali, obteve prestígio como notável pregador.

Porém, quando Maria, “a sanguinária”, assumiu o trono, viu-se forçado a fugir do país. Viveu de março de 1554 a abril de 1559 no continente, passando a maior parte desse período em Genebra. Ali se ligou a Calvino, de quem foi amigo íntimo e discípulo. Enquanto estava ausente de sua pátria, nobres prosseguiam tentando implementar mudanças na Igreja.

Em 1559, Knox regressou à Escócia e liderou os protestantes na reivindicação pela liberdade de culto. Com auxílio do exército inglês, apoiado pelo secretário de Estado da Inglaterra, o reformador se opôs a Maria de Guise, expulsando, em 1560, as tropas francesas que apoiavam a monarca. A partir de então e até sua morte em 1572, à frente da Igreja de Edimburgo, Knox reformou a Igreja Nacional.

Nesse mesmo ano se reuniu pela primeira vez a Assembleia Geral da Igreja. Uma peculiaridade digna de registro é que, na Escócia, os calvinistas ficaram conhecidos como presbiterianos. Na opinião do erudito pregador Lloyd-Jones, deve-se falar do caráter internacional da obra de João Knox a partir da Escócia, pois, como ele demonstra, Knox foi o fundador do puritanismo.

Conclusão

A apreciação da Reforma na Inglaterra e na Escócia nos permite valorizar “os humildes começos” (Zc 4.10). Os puritanos enfrentaram veemente oposição, como Paulo enfrentou em Corinto. Em solo inglês, centenas foram mortos e outras centenas fugiram de Maria, “a sanguinária”.

Na Escócia, Hamilton e Wishart foram sacrificados, e Knox teve que experimentar condições sub-humanas no interior de um navio francês, o exílio na Inglaterra e no continente, para, finalmente, lutar contra a dinastia católica dos Guises.

As batalhas culminaram na consolidação da Reforma na Escócia. Na Inglaterra, se a luta dos reformadores não foi vitoriosa no campo eclesiástico, o movimento deles legou ao mundo aquela que talvez seja a mais rica expressão do cristianismo: a tradição puritana.

Desses dois países o calvinismo se estendeu à Irlanda e aos EUA. Ashbel Green Simonton — que trouxe o presbiterianismo para o Brasil — era descendente de escoceses-irlandeses. Mais uma razão para não desprezarmos os humildes começos.

Aplicação

Você sabia que o aconteceu outrora nas Ilhas Britânicas, perseguição e morte de crentes, está ocorrendo hoje em algumas regiões do mundo? Lembre-se de orar pelos missionários(as).

Como lidamos com o sofrimento? Entendemos que as aflições nos oferecem a oportunidade do crescimento espiritual?

Autor: Marcone Bezerra Carvalho

Semeando Vida

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