Coração em chamas: O movimento que buscou reavivar a ortodoxia morta – Estudo Bíblico sobre a Reforma Protestante

Robert C. Walton aponta duas tendências recorrentes no cristianismo: a ênfase nas emoções, de um lado, e a ênfase no intelecto, de outro. Ao abordar a Idade Moderna, Walton classifica o pietismo como uma reação ao período da ortodoxia da Reforma.

Mas, o que foi o pietismo? Para entender e avaliar o movimento que leva esse nome, temos de compreender, primeiramente, o que a Bíblia diz sobre piedade.

1. Piedade

A palavra piedade pode significar (i) compaixão, pena, dó, como na frase "tem piedade de mim". Esse sentido de piedade como manifestação de misericórdia aparece frequentemente no Antigo Testamento (Dt 13.17, SI 72.13, SI 102.13, Zc 11.6).

Outra conotação que o termo pode apresentar é a de (ii) devoção, religiosidade, isto é, piedade como sinônimo de santidade ou esforço por ela (1 Tm 4.7,4.8,6.6,6.11,2 Tm 3.5,2 Pe 1.3, 3.11). É esse sentido que nos interessa.

"Piedade é uma constante cultura [cultivo] da vida interior de santidade diante de Deus e para Deus, que por sua vez se aplica em todas as outras esferas da vida e prática. Consiste de oração junto ao trono de Deus, estudo de sua Palavra em sua presença e a manutenção da vida de Deus em nossas almas, que afeta toda a nossa maneira de viver" (Errol Hulse).

A piedade nos torna mais parecidos com Cristo, que é o mistério da piedade (1 Tm 3.16; cf. Cl 1.24-29, 2.2-3; 4.3). A Bíblia diz que a piedade é grande fonte de lucro (1 Tm 6.6), sendo “para tudo proveitosa, porque tem a promessa da vida que agora é e da que há de ser” (1 Tm 4.8). O apóstolo Pedro associa a piedade à perseverança, que, por sua vez, está ligada à fraternidade.

Os verdadeiros cristãos se esforçam por andar em novidade de vida, o que só é possível pelo cultivo da piedade, da constante devoção a Deus. Sem santificação ninguém verá o Senhor (Hb 12.14) e, sem vida devocional (piedosa), é impossível se santificar.

2. Pietismo

No âmbito das igrejas surgidas com a Reforma, o século 17 é conhecido como período da "ortodoxia protestante”, que “se caracterizou por uma preocupação profunda e sistemática pelo rigor doutrinário”. Houve ênfase no estudo da teologia, desconectando-o da piedade individual.

A fé em Cristo foi confundida com o mero assentimento intelectual das doutrinas. Durante a primeira metade do referido século, a Europa ainda vivia o horror das guerras religiosas.

É nessa conjuntura de carência espiritual, fomentada pelas controvérsias teológicas e o vazio existencial gerado pelas guerras, que surge na Alemanha o movimento que ficou conhecido como pietismo.

O cenário no qual emergiu esse movimento foi o declínio do luteranismo alemão no fim do século 16 e início do 17.

O pietismo se projetou na segunda metade do século 17, tendo como seu primeiro líder Philipp Jakob Spener (1635-1705). Muito bem preparado, ele recebeu a influência do misticismo medieval e moderno, de Lutero, dos escritos puritanos e de Johann Arndt (1555-1621) — considerado o precursor do pietismo.

Spener foi pastor auxiliar em Estrasburgo a partir de 1663, pastor em Frankfurt de 1666 a 1686, capelão em Dresden e professor nas Universidades de Wittenberg e Leipzig de 1686 a 1690, e pastor e inspetor eclesiástico em Berlim entre 1691 e 1705.

Vendo que muitos na igreja eram cristãos nominais, o consagrado pregador se esforçou por mudar essa realidade. Em 1670, ele passou a reunir na sua casa, duas vezes por semana, um grupo para estudar a Bíblia, orar e discutir o sermão de domingo. Homens e mulheres participavam desses encontros. “Esse trabalho, aparentemente despretensioso, proliferou grandemente, recebendo o nome de collegiapietatis, de onde proveio a denominação 'pietismo”.

Das mais de trezentas obras (dentre livros, sermões e cartas) que Spener publicou, uma se tornou determinante para sua influência: Pia Desideria (Desejos piedosos). Nessa obra, lançada em 1675, encontram-se algumas das principais características do pietismo:

A experiência religiosa

Deve ter um caráter preponderante na vida do cristão.

Biblicismo

Documentos doutrinários (confissões e catecismos), devem ser subalternos à Bíblia.

Perfeccionismo

Crescimento espiritual constante, de modo que a proclamação do evangelho e a prática social caracterizem a vida dos crentes.

Reforma na igreja

Anseio de mudança, em reação às influências mundanas na igreja e à letargia que se abatia sobre ela.

Além de Spener, outro personagem pietista importante foi August Hermann Francke (1663-1727), que sofreu influência direta de Spener, dando continuidade à sua obra e organizando o movimento.

3. A influência do pietismo

O ensino e a prática dos pietistas alemães contribuíram para reforçar, na vida da igreja, os princípios do (i) sacerdócio universal dos crentes, (ii) do cultivo da vida devocional, (iii) da disciplina da igreja, (iv) da prática piedosa, além da mera ortodoxia, (v) da autoridade da Bíblia sobre confissões e catecismos, (vi) da tolerância cristã e (viii) da interioridade ou experiência como fundamento de toda certeza.

Em suma, o pietismo pode ser definido como o movimento que, pelo menos nos seus primórdios, enfatizou a importância da piedade na vida dos discípulos de Cristo.

Já no final do século 17, o pietismo se tornou a grande força dentro do protestantismo alemão. Os últimos anos de Spener foram vividos em Berlim. Por meio de Francke, em Halle, foi criada em 1694 a Universidade que veio a ser uma verdadeira base missionária.

Na capital dinamarquesa, Copenhague, foi organizada uma escola de missões (1714) tendo como alvo evangelizar especialmente a Lapônia e a Groenlândia.

Foi essa escola que enviou os primeiros missionários europeus não católicos à índia: Bartolomeu Ziegenbalg e Henrique Plutschau ali chegaram em 1705. Mas o principal polo de difusão internacional do movimento não se estabeleceu na Alemanha ou na Escandinávia, mas, sim, na Morávia.

Sob a liderança do conde germânico Nicolau Ludwig von Zinzendorf (1700-1760) foi organizada a comunidade de Herrnhut ("refúgio do Senhor"), na Morávia. A importância dessa comunidade é assim descrita pelo historiador Schalkwijk:

...em vinte anos, Herrnhut enviaria mais missionários ao exterior do que todas as outras igrejas protestantes nos primeiros duzentos anos da sua existência! E em breve, a Igreja Morávia no campo missionário seria maior do que a própria igreja mãe.

Além de ser o mentor dos moravianos, Zinzendorf foi o grande missionário-estadista que deu novo impulso às missões no período moderno. Em 1721, já formado e seguindo a tradição familiar, Zinzendorf ingressou no serviço oficial do Eleitor, em Dresden. Em 1722, após ficar sensibilizado com o pedido de abrigo feito por um homem, ele convidou um grupo de trezentos morávios para viver na sua propriedade que seria batizada de “refúgio do Senhor".

Esses refugiados eram o remanescente da Unidade dos Irmãos Boêmios, herdeiros espirituais de João Hus (1372-1415). Por esse tempo Zinzendorf teve a certeza do chamado ministerial, deixou o emprego público e tornou-se o líder da comunidade, que cresceu e se organizou como igreja em 1727.

Ordenado ministro luterano, veio a ser, em 1737, o primeiro bispo da Igreja dos Irmãos restaurada. Os morávios escreveram um dos capítulos mais inspiradores da história da Igreja Cristã e do avanço missionário protestante.

O movimento pietista alcançou outros pontos do continente europeu, venceu os mares, influenciou o pai do metodismo, João Wesley (1703-1791), e também chegou à Nova Inglaterra (futuros EUA). O próprio conde Zinzendorf esteve lá e ajudou a fundar a igreja moraviana em Bethlehem, Pensilvânia.

Conclusão

O pietismo deu origem a algumas denominações autônomas, mas sua maior influência se verificou através da penetração silenciosa nas principais igrejas protestantes, em especial na América do Norte.

Os grupos mais afetados foram os luteranos, os metodistas e os batistas, bem como muitas igrejas resultantes das missões norte-americanas ao redor do mundo no século 19. As igrejas de santidade e o movimento pentecostal também podem ser vistos como manifestações radicais do pietismo alemão.

O pietismo foi um fenômeno de reavivamento da igreja, um necessário esforço em defesa da piedade. Iniciou com a proposta de reformar o luteranismo e acabou transformando os pequenos grupos (collegiapietatis) em igrejas dentro da igreja, ensejando em alguns lugares o exclusivismo e a divisão.

Essas observações não desvalorizam o movimento pietista, mas nos alertam para o fato de que até mesmo as melhores causas podem se desviar do seu propósito inicial. A única obra perfeita é a divina.

Aplicação

Deparamo-nos, em nosso país, com muitos templos cheios de pessoas vazias. Pense nas razões que trazem você à igreja ou que fazem você permanecer nela. De fato, seu prazer está no Senhor?

Como podemos estimular a busca da verdadeira piedade em nós mesmos e na comunidade à qual pertencemos?

Autor: Dráusio Piratininga Gonçalves

Semeando Vida

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