O grito por mudança: Por que a apostasia exigia uma reforma imediata – Estudo Bíblico sobre a Reforma Protestante

Texto Básico: João 3.22-30

Introdução

Deus é o Senhor da História e a governa (Js 4.24), mas esse governo divino não isenta seu povo de passar por períodos difíceis, durante os quais o remanescente fiel enfrenta apostasia e perseguição. O profeta Elias viveu em um período assim (1 Rs 16.29—22.40).

Os dias de Elias foram tenebrosos para o povo da Aliança. A Idade Média, os séculos que separam os primeiros tempos do cristianismo da Reforma Protestante (do séc. 6 ao séc. 15) também foram tempos difíceis.

Movimentos à margem da Igreja Cristã e vozes de dentro dela reivindicaram mudança, porém, essas tentativas de reforma foram silenciadas.

Para tratar dos precursores da Reforma começaremos com o precursor de Jesus, João Batista.

I. João Batista: o precursor do Messias

A missão de João Batista era preparar o caminho do Messias (cf. Lc 1.17,76; 3.4). Cheio do Espírito Santo desde o ventre materno (Lc 1.15), antes de iniciar seu ministério em Israel João viveu no deserto (Lc 1.80).

João “não era a luz, mas veio para que testificasse da luz” (Jo 1.8). No anúncio da vinda do reino, João fez jus à condição de profeta, sendo fiel a Deus e destemido. Pregava no deserto e nas cidades, era ouvido por multidões, batizou muitos e era seguido por seus discípulos.

Sua mensagem era:

Mt 3.2
arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus

Lc 3.8-9
produzi, pois, frutos dignos do arrependimento (...) já está posto o machado à raiz das árvores; toda árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada, e lançada ao fogo.

Falava a verdade a quem quer que fosse e conclamava as pessoas à mudança de vida.

Ao principal grupo religioso da época, os fariseus que odiavam Jesus - João disse: "Raça de víboras, quem vos induziu a fugir da ira vindoura?” (Mt 3.7). 

Ao tetrarca Herodes, que mantinha um relacionamento ilícito com a cunhada Herodias, desferiu: “Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão” (Mc 6.18) - razão por que acabou decapitado (Mc 6.28).

A influência de João excedeu seu tempo de vida e local de atuação (deserto da Judeia), pois aproximadamente vinte anos após sua morte, Paulo batizou em Éfeso cerca de doze de seus discípulos (At 19.1-7). Ele tinha plena consciência do seu papel secundário: "eu não sou o Cristo, mas fui enviado como seu precursor” (Jo 3.28).

Não há qualquer problema em valorizar homens como João Batista, pois, não sendo o sol, contentou-se em ser sua aurora a claridade que precede sua aparição ("convém que ele cresça e que eu diminua”, Jo 3.30).

II. A necessidade de mudança

Tal como João Batista, em relação a Jesus, diversos movimentos e personagens prepararam o caminho para mudanças na Igreja Cristã, antes da Reforma do século 16. 

Até o início do 4° século, na fase pré-constantiniana, a igreja havia conseguido manter um bom nível de devoção espiritual entre seus membros.

Com o cesaropapismo iniciado nos dias do imperador Constantino e com o ingresso de não convertidos na igreja, originou-se um sistema que pouco a pouco foi se transformando no que hoje é o Catolicismo Romano.

Questões teológicas, políticas e étnicas fizeram com que no 4º e 5º séculos alguns grupos se afastassem da Igreja de Roma.

Séculos depois, as diferenças raciais e culturais entre Ocidente e Oriente - aquecidas no transcurso do tempo por debates e divergências sobre variados temas - resultaram no Grande Cisma de 1054 (que perdura até hoje), a divisão entre a igreja do Ocidente e a do Oriente.

A partir do século 11, críticas e reações se intensificaram, trazendo mais desconforto ao clero e à instituição. Razões não faltaram para isso. 

Diante da degradação moral de grande parte dos clérigos, e das tramas políticas envolvendo Papas (e seus subalternos) e chefes dos Estados Nacionais (Alemanha, França, Inglaterra, etc.), movimentos se organizaram dentro e fora da Igreja Católica Romana.

Ora sinalizando mudança, ora massacrando hereges (reais ou não), a igreja teve dificuldades em lidar com a oposição. E nessa conjuntura que surge a Inquisição: um tribunal especialmente constituído para julgar tanto ações quanto intenções.

Em diversas partes da Europa, então, vozes se ergueram. Principalmente na França e na Itália, indivíduos como Pedro de Bruys, Henrique de Lausanne, Arnaldo de Bréscia, Hugo Speroni e Gerardo Segarelli, e seitas como a dos beguinos, questionaram um ou mais aspectos da doutrina oficial.

Nem sempre as novas ideias ou doutrinas partiram de pessoas à margem da instituição. O caso de Joaquim de Fiore foi uma crítica “feita no seio da igreja e em sua obediência, ao contrário da rebelião aberta dos seguidores de outras heresias...”.

Mas foram dois movimentos que se projetaram e deram mais trabalho aos inquisidores: os cátaros e os valdenses.

Os cátaros

Os cátaros (em grego, “puros”) ou albigenses (de Albi, na França) se constituíram no movimento que reuniu maior número de adeptos e foi o que teve maior repercussão na Baixa Idade Média (séculos 11 a 15).

Surgidos no século 11, “caracterizavam-se por um sincretismo cristão, gnóstico e maniqueísta, com um dualismo radical (espiritual X material) e extremo ascetismo. Foram condenados pelo 4º Concilio de Latrão, em 1215, e mais tarde aniquilados por uma cruzada. Para combater esses e outros hereges, a Inquisição foi oficializada em 1233".

Após 35 anos de perseguição, em 1244, 200 cátaros foram queimados em Montségur. Foi o fim do movimento.

Os valdenses

São os discípulos de Pedro Valdo (c. 1140 — c. 1218). Esse grupo possui uma das histórias mais dramáticas de que se tem notícia.

"Tinham um estilo de vida comunitário, ensinavam as Escrituras no vernáculo (enfatizando o Sermão do Monte), incentivavam a pregação de leigos e de mulheres, negavam o purgatório. Condenados pelo Concilio de Verona em 1184, foram muito perseguidos, refugiando-se em vales quase inacessíveis dos alpes italianos”.

Após mais de 300 anos de resistência, o movimento estava prestes a desaparecer. Foi quando eclodiu a Reforma e, assim, ligando-se ao protestantismo, os valdenses experimentaram uma fase de novo ânimo e revitalização. 

No entanto, diante das guerras religiosas do período em questão, sendo perseguidos pela Igreja Católica, no final do século 17 restavam poucas centenas deles.

Para sobreviver migraram para Suíça e, nos dias de Napoleão Bonaparte (1769— 1821), por volta de 1200 fiéis já estavam novamente instalados nos alpes italianos. Somente em 1848 passaram a gozar dos direitos políticos e civis dos demais cidadãos.

Atualmente seus núcleos estão na Itália e no Uruguai, havendo também igrejas valdenses na Argentina e nos EUA. A Igreja Valdense, que é protestante, é anterior à Reforma do século 16.

Movimentos devocionais. Também surgiram movimentos que não se desligaram do catolicismo, mas permaneceram nele por se concentrarem na vida devocional, sem críticas aos dogmas católicos.

Um deles foi o misticismo, bastante forte na Inglaterra, Holanda e especialmente na Alemanha (Reno). Os principais místicos dessa época foram Meister Eckhart (†1327); Tauler (†1361) e os Amigos de Deus', Henrique Suso (~11366) e mais tarde o célebre teólogo e líder eclesiástico Nicolau de Cusa (1401-1464). 

O misticismo dava ênfase à união com Deus, ao amor, à humildade e à caridade, e produziu uma belíssima literatura devocional.

III. Precursores da reforma

Após o pontificado de Bonifácio VIII (1294- 1303), o papado entrou em declínio e a imagem da igreja foi gravemente manchada. Seguiu-se um período de crescente desmoralização do papado.

Clemente V (1305-1314), um papa francês, transferiu a Cúria, ou seja, a administração da Igreja, para Avinhão, ao sul da França (1309-1377). Finalmente, ocorreu o chamado “Grande Cisma”, em que houve dois e posteriormente três papas rivais em Roma, Avinhão e Pisa (1378-1417).

Diante dessa situação constrangedora, surgiu em toda a Europa um clamor por "reformas na cabeça e nos membros”. Durante o “Grande Cisma”, cada papa se considerou o único legítimo e excomungou o rival.

Nesse contexto turbulento, destacaram-se os chamados pré-reformadores, na realidade reformadores que não conseguiram ser bem sucedidos, porque ainda não era chegada a “plenitude do tempo".

João Wyclif (c. 1328-1384)

O período de vida do padre inglês Wyclif coincide com o do papado em Avinhão (França). Formado em Oxford, começou a lecionar nesta Universidade ainda jovem e logo foi reconhecido como seu mais destacado teólogo. Serviu também como conselheiro da Coroa.

O cisma papal muito contribuiu para a propagação de suas ideias e escritos. Ele e seus auxiliares de Oxford traduziram a Bíblia para o inglês e, assim, pela primeira vez o povo da Inglaterra pôde lê-la no vernáculo.

Para espalhá-la, organizou a ordem dos Irmãos Lollardos, uma sociedade de pregadores leigos que congregava estudantes de Oxford e pessoas da sua própria paróquia. Wyclif defendia a “pobreza apostólica” (simplicidade), a Escritura como única regra de fé, que os eleitos eram a igreja (e não os clérigos) e que Cristo era o cabeça da igreja, e não o Papa.

Como era muito prestigiado, mesmo tendo suas posições condenadas pelo Papa (1377), o reformador inglês teve uma morte tranquila devido à proteção dos nobres de seu país. 

No entanto, décadas depois, foi declarado herege e excomungado pelo Concilio de Constança (1415) e, em 1428, seus ossos foram desenterrados e queimados, com as cinzas lançadas no rio Swift. Algumas de suas posições anteciparam o pensamento dos principais reformadores.

João Huss (c. 1372-1415)

Nascido na antiga Boêmia (parte da atual República Checa), Huss foi grandemente influenciado pelas ideias de Wyclif e divulgou-as por outras partes da Europa.

Com o casamento de Ricardo II (rei inglês) e Ana da Boêmia, os laços entre os dois países se estreitaram e, por meio de um estudante checo que estudou em Oxford, Jerônimo de Praga, os escritos do reformador inglês chegaram à terra de Huss. As mesmas críticas de Wyclif ao catolicismo romano foram feitas por Huss.

Seu modo de vida era simples, ele contava com o respeito do povo, era o grande pregador de Praga e veio a ser o porta-voz dos anseios políticos e religiosos dos seus patrícios.

Por conta disso, em 1409 o papa Alexandre V autorizou o arcebispo de Praga a erradicar quaisquer ideias reformistas na diocese. Recusando-se a deixar de pregar, Huss foi excomungado pela Igreja Católica.

A situação ficou arriscada para ele, que não tinha o apoio do rei, e assim teve de fugir para o sul do país. Convocado para se apresentar no Concilio de Constança, Huss foi enganado com a promessa de que não seria morto.

Ali, heroicamente defendeu suas ideias e se negou a voltar atrás em suas posições. Foi queimado e morreu como mártir em julho de 1415, por decisão do mesmo concilio que declarou hereges Wyclif e Jerônimo de Praga. A execução de Huss explodiu como uma bomba na sua terra, despertando os boêmios para lutar por sua independência contra os alemães.

Jerônimo de Praga (1379-1416)

A importância de Jerônimo está relacionada a Wyclif e Huss. Filho de família abastada, formou-se em teologia na Universidade de Praga (1398).

Entre 1402 e 1403 esteve na Inglaterra, em Oxford, onde estudou e copiou duas das principais obras de Wyclif. Essa passagem por Oxford marcaria sua vida e influenciaria os rumos da sua nação.

Obteve o grau de mestre pela Universidade de Paris (1405) e, em seguida, nas universidades alemãs de Colônia e Heidelberg. Esteve novamente na Inglaterra (1407), de onde regressou para Praga.

Ali, ao lado de João Huss, proclamou os ideais nacionalistas e teve de enfrentar a oposição da igreja. Defensor e disseminador dos pontos de vista do mestre de Oxford, Jerônimo foi preso em 1410 na cidade de Viena (Áustria) e excomungado na mesma época em que uma bula papal condenava os escritos de Wyclif.

Conseguiu escapar, regressou a Praga e passou a defender mais enfaticamente a necessidade de Reforma na igreja. Em 1413 ainda visitou a Polônia e a Lituânia. Em outubro de 1414, conforme havia prometido a Huss, seguiu para Constança para ajudá-lo.

Ali, como Wyclif e Huss, foi considerado herege e, depois de 340 dias preso em uma masmorra, sendo alimentado apenas com pão e água, foi queimado em 30 de maio de 1416.

Wyclif, Huss e Jerônimo de Praga não viram a mudança que tanto ansiaram na igreja, mas suas vozes prenunciaram um grande acontecimento. O historiador Nichols descreve a época deles como “a aurora da Reforma".

Conclusão

Por vezes, ao se estudar a História, a visão de episódios prevalece sobre a visão que privilegia as estruturas de longa duração. O estudo do contexto histórico nos permite entender e relacionar os personagens às suas respectivas épocas.

Assim, é correto afirmar que a Reforma Protestante foi uma ruptura do Catolicismo Romano, mas não é correto vê-la separadamente de um movimento que clamava por mudanças há alguns séculos.

Wyclif, Huss, Jerônimo de Praga, os valdenses e outros — cuja existência caiu no anonimato — foram usados pelo Senhor para que a longa estrada pela qual outros andariam fosse pavimentada.

Estes homens podem ser comparados a João Batista, que veio antes e avisou sua geração acerca do Messias.

Aplicação

Todos que querem viver piedosamente serão perseguidos (2Tm 3.12). Qual é a sua reação diante da hostilidade das pessoas em relação à sua fé? Ou você não enfrenta pressões e dissabores por ser cristão? Você tem lembrado de orar pelos cristãos que vivem em outros países?

Autor: Marcone Bezerra Carvalho

Semeando Vida

Postar um comentário

O autor reserva o direito de publicar apenas os comentários que julgar relevantes e respeitosos.

Postagem Anterior Próxima Postagem
Ajuste a fonte: