Texto Básico: Romanos 3
Introdução
Ao se estudar a vida de Lutero somos tentados a incorrer em algum dos perigos mencionados pelo historiador francês Emile Léonard:
- Glorificar o protagonista
- Apresentá-lo como herói, omitindo suas imperfeições e falhas
- Julgar sua atuação inalcançável, sendo impossível realizar algo semelhante em nossos dias.
Este estudo objetiva apresentar Lutero por aquilo que ele foi, mas, sobretudo, destacar o principal tema da Reforma, a justificação pela fé somente.
I. Lutero antes da descoberta
Nos séculos que precederam a Reforma, surgiram movimentos e personagens que reivindicaram mudanças na Igreja Romana. Parte desse clamor foi expresso pela tradição evangélica que existia dentro do catolicismo. Mas, sob Deus, o que permitiu que o brado de Lutero causasse significativa repercussão no século 16 foi a conjuntura histórica da Europa.
Descendente de uma família de camponeses, Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, na cidade de Eisleben, mas viveu em Mansfeld, Magdeburgo, na região da Saxônia, e em Eisenache Erfurt, na Turíngia.
O nome Martinho foi inspirado no de São Martinho de Tours, cuja festa caía no dia seguinte ao do batizado de Lutero.
Seu pai, Hans, proprietário de uma mina de cobre, com muito esforço conseguiu que ele tivesse uma educação aprimorada. Lutero teve uma formação cristã calcada na piedade e no misticismo, comuns à época. Recebeu uma rígida disciplina do pai e a influência religiosa e supersticiosa da mãe.
Aos 18 anos Lutero ingressou na Universidade de Erfurt, com a intenção de se tornar advogado. Levou quatro anos nos estudos preliminares do Direito, aprofundando-se na filosofia medieval. Nos fins de semana, com frequência ia a pé até sua cidade natal para visitar os pais.
Menos de 2 meses após se formar, quando já estava preparado para iniciar sua carreira profissional, um fato mudou o rumo da sua vida. Indo de Mansfeld para Erfurt, numa tarde de verão um raio atingiu o chão perto dele, derrubando-o do cavalo.
Tomado de pavor, invocou sua padroeira: “Santa Ana, ajuda-me e me tornarei monge!" Depois dessa promessa, ele entrou para o Convento dos Agostinianos (1505).
Naqueles dias a ansiedade escravizava a população. Sentimentos de culpa e medos alimentados pelo desconhecimento bíblico e pelas tradições populares, reforçavam a ideia de salvação pelo mérito próprio.
No mosteiro, Lutero enfrentou crises de intensa angústia espiritual. O alívio que tanto almejava para sua alma parecia fugir dela. Por mais que realizasse os exercícios religiosos e disciplinares, ele não alcançava a certeza da sua salvação. Penitências e orações faziam parte da sua rotina.
Aconselhado por seu superior João Staupitz, passou a meditar na cruz de Cristo. Foi ordenado sacerdote em 1507. Em viagem a Roma, sede do papado, ficou decepcionado com a imoralidade e apatia espiritual que presenciou por lá.
Em 1512, obteve seu doutorado em teologia e, já instalado como professor na Universidade de Wittenberg, de propriedade de Frederico, o Sábio, entregou-se cada vez mais ao estudo das Escrituras.
Ensinando na universidade e na paróquia local, entre os anos 1513 e 1516, como resultado do estudo da Palavra de Deus, ele ganhou uma nova compreensão da justiça de Deus e da justificação pela graça mediante a fé.
Essa descoberta da teologia da cruz, que implica o reconhecimento de que a nossa justificação é somente pela fé, revolucionou a vida de Lutero e, em poucos anos, abalaria as estruturas do continente europeu.
II. A justificação pela fé
Entre o fim de 1512 e o início de 1513, enquanto lia a Carta aos Romanos, Lutero se deparou com estas palavras:
Romanos 1.17
O justo viverá pela fé
Ele declarou que a justificação pela fé somente é o artigo sobre o qual a igreja permanece ou cai. Essa doutrina fundamental da Reforma Protestante tem sido vista como o campo de batalha de nada menos do que o próprio evangelho.
A justificação pode ser definida como o ato pelo qual pecadores injustos são feitos justos aos olhos de um Deus santo e justo. A necessidade suprema das pessoas injustas é a justiça.
Essa falta de justiça foi suprida por Cristo em favor do pecador que crê. Justificação somente pela fé significa justificação pela justiça ou pelo mérito exclusivo de Cristo, e não pela nossa bondade ou pelas nossas boas obras.
A questão da justificação se focaliza na questão do mérito e da graça. Justificação pela fé significa que as obras que fazemos não são suficientemente boas para merecer a justificação (Rm 3.20).
A justificação é forense. Isto somos declarados, contados ou considerados como justos quando Deus computa a justiça de Cristo em nossa conta. A condição necessária para isso é a fé.
A Bíblia ensina que a fé é a causa instrumental da justificação no sentido em que a fé é o meio pelo qual os méritos de Cristo são apropriado por nós.
A teologia católica romana ensina que o batismo é a causa instrumental primária da justificação e que o sacramento da penitência é a causa secundária e restauradora. A teologia católica vê a penitência como o segundo suporte da justificação para aqueles que sofreram naufrágio de suas almas — aqueles que perderam graça da justificação por terem cometido um pecado mortal.
O sacramento da penitência requer obras de satisfação, por meio das quais o ser humano conquista um mérito congruente para a justificação. A visão católica afirma que a justificação é pela fé, mas nega que seja somente pela fé, adicionando as boas obras como uma condição necessária.
A fé que justifica é uma fé viva, não uma profissão de fé vazia. A fé é uma confiança pessoal que busca a salvação somente em Cristo. A fé salvadora é também uma fé penitente, que abraça Cristo como Salvador e Senhor.
A Bíblia diz que não somos justificados por nossas próprias boas obras, mas pelo que nos é acrescentado pela fé, ou seja, a justiça de Cristo. Em síntese, algo novo é acrescentado a algo básico.
Nossa justificação é uma síntese porque temos a justiça de Cristo que nos é adicionada. Nossa justificação é operada por imputação. Deus transfere a nós, pela fé, a justiça de Cristo. Isso não é uma “ficção jurídica”, porque Deus nos atribui o mérito real de Cristo, a quem agora pertencemos. E uma imputação real.
III. A justificação pelas obras
Muitas pessoas supõem que, ao tentar viver uma vida boa, já fizeram tudo o que é necessário para obter o céu. Põem a confiança nas boas obras que fazem como fim de satisfazer as demandas da justiça de Deus.
Essa é uma esperança fútil. A lei de Deus requer perfeição. Visto que não somos perfeitos, não temos a bondade necessária para entrar no céu. Dessa maneira, nunca podemos sentir-nos realizados vivendo uma vida boa. Só podemos concretizar isso confiando na justiça de Cristo. Seu mérito é perfeito e é colocado à nossa disposição por meio da fé.
Crer que somos justificados por nossas boas obras à parte da fé é abraçar a heresia do legalismo. Crer que somos justificados por um tipo de fé que não produz obras é abraçar a heresia do antinomianismo.
A relação de fé e boas obras é aquela que pode ser distinguida, mas nunca separada. Embora nossas boas obras não acrescentem nenhum mérito à nossa fé diante de Deus e apesar da única condição de nossa justificação ser nossa fé em Jesus Cristo, se as boas obras não seguem nossa profissão de fé, isto é uma clara indicação de que não possuímos a fé que justifica.
A verdadeira justificação sempre resulta no processo de santificação. Se há justificação, a santificação inevitavelmente se seguirá. Se a santificação não resulta, é certo que a justificação não se fez realmente presente. Isso não significa que a justificação dependa ou se apoia na santificação. A justificação depende da verdadeira fé, a qual, por sua vez, inevitavelmente conduz às obras de obediência.
Quando Tiago declara que a fé sem obras é morta, está dizendo que tal “fé” não pode justificar ninguém, porque não é viva. A fé viva produz boas obras, mas essas boas obras não são a base da justificação. Somente o mérito conquistado por Jesus Cristo pode justificar o pecador.
É um grave erro e de fato uma forma moderna da heresia do antinomianismo sugerir que uma pessoa pode ser justificada aceitando Jesus como Salvador, mas não como Senhor.
A verdadeira fé aceita Cristo como Salvador e como Senhor. Confiar só em Cristo para a salvação é reconhecer a total dependência dele e arrepender-se dos pecados. Arrepender-nos dos pecados significa submeter-nos à autoridade de Cristo. Negar seu senhorio é buscar justificação com uma fé impenitente, a qual na verdade não é fé.
Embora nossas boas obras não nos proporcionem salvação, elas são a base sobre a qual Deus promete distribuir recompensas no céu. Nossa entrada no Reino de Deus é pela fé somente. Nossa recompensa no Reino será de acordo com nossas boas obras.
IV. Uma vida coerente
A descoberta de que o homem é justificado diante de Deus somente pela fé impactou Lutero; mas uma fé viva (Tg 2.26). Esses dois aspectos da justificação se harmonizaram na vida do reformador alemão.
Instalado em Wittenberg desde 1512, os anos seguintes serviram para que o sacerdote se aprofundasse no estudo da Bíblia, da filosofia e, especialmente, dos Salmos, dos escritos de Paulo e do pensamento de Agostinho.
Líder da Ordem dos Agostinianos, sem romper com a Igreja, Lutero via sua audiência aumentar tanto na cátedra como no púlpito, à medida que sua teologia se solidificava.
Foi nesse contexto que ele tomou conhecimento da venda de indulgências — papéis que (segundo a Igreja) garantiam a diminuição das penas no purgatório, isto é, o perdão de pecados. Lutero decidiu enfrentar o erro das indulgências e o sistema por trás delas.
Em 31 de outubro de 1517, de acordo com um costume da época, ele afixou na porta da Igreja o Debate para o esclarecimento do valor das indulgências, no qual constavam suas 95 teses. Daí por diante a vida de Lutero experimentou enorme mudança. Em dois meses as 95 teses foram espalhadas em toda a Europa.
Conclusão
O rompimento de Lutero com a Igreja Católica originou o movimento que ficou conhecido por luteranismo.
A trajetória do reformador alemão é marcada por feitos heroicos, alguns erros e por um pensamento teológico que se desenvolveu ao longo dos anos. Reconhecer isso em nada diminui a sua obra, pelo contrário, valoriza-a, pois Deus muda o rumo da humanidade usando imperfeitos vasos humanos.
Lutero não teria dificuldade em concordar como esse juízo porque ninguém melhor do que ele entendeu que o homem é justificado pela fé, dom de Deus, e não por obras.
A descoberta da doutrina da justificação pela fé impulsionou Lutero a muitas realizações. Nele, o conhecimento bíblico redundou em ação, o teólogo e o reformador se harmonizaram.
Aplicação
Lutero desconhecia a paz que somente encontramos na cruz. Quando a encontrou, sua vida mudou. Que evidências sua conduta apresenta do novo nascimento? Que impacto sua fé tem junto às pessoas à sua volta?
Autor: Marcone Bezerra Carvalho