De Um Carro no Deserto ao Coração do Reino: A Conversão do Eunuco Etíope

Texto da lição: Atos 8.26-40

Introdução

O ser humano sempre se achou capaz de resolver o problema de seu relacionamento com Deus. Antes e depois da torre de Babel. E a moda continua. Pessoas supõem não precisar de Deus... para encontrá-lo. Quanta presunção!

Mas é melhor ir jogando as pedras fora, porque não estamos livres dessa tentação. Quer ver? Examine nossos programas e nossa estratégia evangelística. Muitas vezes damos a entender que nós agimos e as pessoas são salvas. Nós resolvemos. Mas... o que diz a Bíblia?

I. "A dispersão dos helenistas"

Nosso texto relata a atividade evangelística de Filipe. Filipe pertencia ao primeiro grupo de diáconos da igreja de Jerusalém (At 6.5). A escolha dos diáconos se dera porque as viúvas helenistas estavam sendo esquecidas na distribuição diária (At 6.1).

Quem eram os helenistas? Helenistas eram judeus de fala grega, provenientes da dispersão, ou seja, nascidos fora da Palestina. Possuíam nomes gregos (Veja a lista de At 6.5) e em certo sentido eram mais abertos que os judeus palestinenses (Judeus de fala aramaica nascidos na Palestina.).

Estêvão pertencia a esse grupo de diáconos helenistas. Seu discurso inflamado diante do Sinédrio (At 7.1-8.1a) provocou a primeira perseguição à igreja de Jerusalém (At 8.1b).

Na verdade, a perseguição parece ter-se imposto mais contra os helenistas, visto que os apóstolos permaneceram na cidade. Seja como for, a perseguição deu impulso para dar continuidade à missão cristã (At 8.1b,4). Filipe era um dos que foram dispersos. Sua atividade como evangelista fez avançar a propagação cristã. Filipe prega aos samaritanos (At 8.5) e agora para um estrangeiro (8.26-40).

Passemos à análise mais detalhada do texto básico.

II. Um coração preparado para receber o evangelho (8.27-28)

O versículo 27 faz uma descrição do ouvinte da pregação de Filipe. Inicialmente diz que tratava-se de um "etíope", isto é, um homem de cor negra.

Encontramos ainda em Atos 13.1 outra referência a negros na comunidade cristã primitiva. Este etíope era "alto oficial de Candace, rainha dos etíopes", e por causa disso "eunuco". Os homens que exerciam altas funções para rainhas nas monarquias antigas eram geralmente emasculados.

O texto não fala, mas é quase certo que este etíope fosse um "temente a Deus". Essa expressão aparece várias vezes em Atos e se aplica aos estrangeiros que sentiam atração pela religião dos judeus (At 10.2).

Pessoas cansadas de sua religiosidade pagã encontrando conforto no Deus de Israel. Levavam esse designativo (temente a Deus) porque não haviam sido ainda circuncidadas (prosélitos).

Os judeus das sinagogas acalentavam esperanças de uma decisão mais cedo ou mais tarde por parte dos tementes a Deus de se submeterem ao rito da circuncisão. No caso deste etíope eunuco isso nunca se daria, pois a lei não permitia que um eunuco fizesse parte do povo de Deus (Dt 23.1).

Apesar de tudo, o etíope era alguém que nutria um sentimento de necessidade de buscar a Deus. Estava retornando das celebrações cultuais em Jerusalém (At 8.27). Era também leitor da Escritura Sagrada (At 8.28), queria compreender mais a mensagem bíblica.

Muitas pessoas que se convertem ao evangelho têm tido anteriormente a experiência da busca do sagrado. Pessoas que não se contentam com uma religiosidade formal e buscam satisfazer sua sede de Deus de modo integral.

Outras são atraídas para o evangelho porque se aventuraram a ler a Bíblia e querem uma explicação mais eficiente do que leram. O etíope do nosso texto sintetiza ambos os anseios, trata-se de um terreno fértil, possui um coração preparado para o evangelho.

III. Um instrumento pronto para propagar o Evangelho

O Senhor se utiliza de pregadores humanos para levar sua mensagem de salvação. O anjo (v.26) não prega ao etíope, mas envia Filipe até ele. Filipe exercitava qualidades que o capacitavam a pregar (At 6.3):

A. Era cheio do Espírito Santo

Atos nos narra que o Espírito Santo presente na Igreja era o cumprimento de uma promessa feita no Antigo Testamento (At2.17-21; Jl2.28-32). O Espírito que atuara em algumas pessoas da antiga dispensação atuaria agora de maneira mais completa em toda a Igreja. Cada crente seria portador da promessa.

No entanto, Filipe não possuía somente o dom do Espírito, mas era cheio dele. Ser cheio do Espírito em Atos significa ser preparado para a missão, prova disso é a oração de Pedro logo após sua soltura (At 4.23-31; veja especialmente os vs. 29 e 31).

Se queremos evangelizar devemos orar rogando a Deus a plenitude do Espírito. Se queremos ser cheios do Espírito devemos estar prontos para evangelizar.

B. Era de boa reputação

Em outros termos, Filipe possuía uma conduta inatacável. Pode-se dizer que, como consequência da ação do Espírito Santo em sua vida, seu caráter era elevado. O evangelho de Cristo atinge o homem e a mulher para que estes respondam de forma ética ao seu chamado.

Em gratidão procuramos agradar a Deus. Os atos de Filipe eram manifestos e muitos testemunhavam acerca disso. Sua eleição para o diaconato não foi efetuada porque sabia lisonjear ou porque possuía determinado status social.

Fora escolhido porque sua boa conduta era notória. Seu procedimento ético o autorizava a ser um proclamador. Isso pode ser sintetizado da seguinte forma: "minha vida, minha mensagem".

C. Era cheio de sabedoria

Sabedoria na Bíblia significa "saber falar, saber agir". Atitudes práticas derivam do saber. Não se trata de saber pelo prazer do conhecimento. Trata-se de saber para fazer acontecer (Veja-se por exemplo o livro dos Provérbios).

Filipe demonstra sabedoria ao fazer a pergunta certa: "Compreendes o que vens lendo?" (At 8.30). Travou-se a comunicação correta entre os dois. O caminho se abriu para compartilhar o evangelho. Da mesma forma devemos procurar entabular uma comunicação correta com aqueles que queremos evangelizar.

Devemos fazer as perguntas certas. Descobrir quais são as indagações dos corações que procuram conhecer mais a Deus. Filipe também demonstra sabedoria pelo seu saber das Escrituras (At 8.35). Seu conhecimento das Escrituras o capacitou a esclarecer as dúvidas de seu interlocutor. Quanto mais conhecemos as Escrituras, mais sabedoria temos.

IV. A atuação de Deus na proclamação do Evangelho

A narrativa revela que Deus está o tempo todo atuando. Inicialmente um anjo da parte do Senhor envia Filipe para a missão (At 8.26). Depois o Espírito ordena que Filipe se aproxime do carro do etíope (At 8.29) e finalmente o transporta para Azoto (At 8.40).

Com tudo isso, Lucas pretende nos ensinar que atrás de todo o processo de conversão está a ação divina. É Deus quem atua através dos homens e das Escrituras. Nada foge ao seu agir soberano nesse processo.

Evangelizar é ter certeza de que o próprio Deus está vindo ao encontro do homem (2 Co 5.18-20). Receber a salvação oferecida no evangelho é encontrar-se com o próprio Deus através de seu Filho Jesus Cristo. Os nossos olhos não veem isso, mas é isso o que de fato acontece.

V. Os efeitos da conversão

A conversão do etíope é marcada inicialmente por uma maior compreensão do texto bíblico. Filipe responde à questão central: "...a quem se refere o profeta. Fala de si mesmo ou de algum outro?" (At 8.34). O texto de Isaías 53.7-8 é o ponto de partida para o anúncio sobre Jesus.

O mesmo aconteceu com os dois discípulos no caminho de Emaús. Jesus lhes explicou o que se cumprira nele a partir das Escrituras (Lc 24.26-27). A conversão do etíope tem início à medida que ele vai entendendo as Escrituras com mais precisão. Sua sede por conhecimento pela Palavra de Deus vai sendo satisfeita por Filipe.

Outro efeito consequente da conversão é o desejo do etíope de ser batizado. Receber o batismo é professar adesão a Jesus Cristo e ao mesmo tempo tornar-se membro da igreja. Ato visível de uma graça invisível, "...que impede que seja eu batizado?"

A pergunta é sintomática em seu caso específico. Lembremos que, apesar de honrar a Deus, o etíope como eunuco não podia fazer parte da comunidade judaica. E da comunidade cristã pode?

Pode, pois no mesmo livro de Isaías se declara que no final dos tempos mesmo os eunucos que amassem a Deus o serviriam (Is 56.3-8). Assim, o etíope recebe o batismo porque creu em Jesus Cristo e com o batismo deixa de ser um marginalizado para ser um participante.

E finalmente, como resultado de sua conversão, a exultante alegria (At 8.39). Alegria porque conheceu o Salvador de maneira pessoal. Alegria porque entendeu as Escrituras. Alegria porque recebeu o batismo. Alegria porque seu nome está registrado nos céus.

Aplicação

O relato da conversão do etíope nos mostrou que Deus dirige todo o processo de conversão das pessoas. Isso começa desde o chamado para alguém anunciar a Jesus Cristo até a transformação que se efetua na pessoa que se converte. Deus orienta o pregador, descortina-lhe a mensagem e abre o entendimento do que se converte. Isso deve nos motivar e impulsionar para uma maior atividade de proclamação do evangelho. Cientes da real presença de Deus conosco temos mais segurança em compartilhar a salvação.

Deus não faz acepção nem de cor e nem de classe social. Na Igreja de Cristo ninguém tem o direito de fazer distinção de raça, classe social ou sexo, "pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque todos quantos fostes batizados em Cristo, de Cristo vos revestistes. Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gl 3.26-28). A conversão abre as portas para a sociedade ideal e essa sociedade é a Igreja. O mundo lá fora pode ter seus parâmetros de associação, mas a Igreja não é o mundo. Na Igreja, o mundo com seus valores é superado. Dentro dela reina Jesus Cristo e sua vontade se expressa em sua Palavra. Todos são iguais e são um em Cristo Jesus.

Converter-se a Cristo é gozar da alegria de ser filho de Deus. Uma nova realidade brota do interior do convertido: a certeza de salvação (Gl 4.6). Quando evangelizamos estamos sendo agentes dessa alegria para aquele que abraça a salvação.

Uma alma vale mais que o mundo inteiro. Poderíamos perguntar: qual o propósito de Deus ao levar Filipe para evangelizar uma única pessoa? Os caminhos de Deus são misteriosos, mas podemos arriscar um palpite: o etíope convertido seria, a partir de então, um missionário em sua própria terra, que era tão distante, compartilhando o evangelho, bendizendo a Deus. Quantas igrejas tiveram seu início somente com um convertido? Basta ver o exemplo dado em Lucas 8.26-39 (em especial o v.39).

Autor: Rev. José Roberto Corrêa Cardoso