Princípios eternos no relato da criação


Em Malaquias 3.6, lemos uma declaração do Senhor que revela uma das grandes verdades referente à Sua pessoa. Assim está escrito: “Porque eu, o SENHOR, não mudo.” Este texto diz respeito à imutabilidade do Senhor. 


O teólogo sistemático Wayne Grudem define imutabilidade da seguinte maneira: “Deus é imutável no seu ser, nas suas perfeições, nos seus propósitos e nas suas promessas” (GRUDEN, 1999, p.111). 

Esta imutabilidade é perceptível em toda a Escritura ainda que em alguns momentos não ocorram referências explícitas sobre o assunto. É exatamente isso que no relato da criação descrito no livro de Gênesis. 

Este livro foi escrito por volta do século XV antes de Cristo e teve como objetivo narrar as origens de todas as coisas. Moisés, o autor do livro, escreveu essa obra enquanto os hebreus estavam no deserto esperando a entrada na terra prometida. 

Moisés a princípio, endereçou o livro para um povo resgatado da escravidão, errante pelo deserto e na expectativa de adentrar em Canaã (GRONINGEN, 1995, p. 92).

E Moisés assim procedeu com o objetivo de estabelecer para os hebreus parâmetros para o tipo de vida que eles deveriam adotar daquele momento em diante.

Tais parâmetros estão intimamente relacionados com princípios eternos que já se fazem presentes no trecho lido e que serviram tanto para a época, quanto para o povo de Deus nos dias de hoje.

E isto ocorre exatamente por conta da imutabilidade do ser Deus, de Suas perfeições, de Sua palavra e de Seus propósitos. 

Os princípios são eternos porque Deus é imutável. Mas se falamos de princípios eternos que que deveriam nortear a vida do povo de Deus antes e hoje, a pergunta que surge é: Que princípios são estes? E quais são suas implicações para a nossa vida? 

É o que veremos a seguir.



1. O Senhor tem domínio sobre sua criação
Conforme Derek Kidner comenta, “não é por acidente que o termo Deus exerce a função de sujeito da primeira sentença da Bíblia” (KIDNER, 1981, p. 41).

Tal ocorrência tem como objetivo demonstrar a majestade de Deus. Logo, Moisés intenta demonstrar aos israelitas que Deus de fato é rei e governa soberanamente sobre todas as coisas. 

O verbo bará, para o qual traduzimos o verbo “criou” no v.1, demonstra que todas as coisas foram criadas a partir do nada.

Além disso, todas estas coisas criadas a partir do nada vieram a surgir exatamente da maneira como Deus ordenou. Moisés insiste nesse fato por diversas vezes ao frisar “e assim se fez”. 

O objetivo é comunicar a seguinte idéia: Tal como foi ordenado, assim aconteceu. Além disso, comunica a idéia de controle absoluto sobre a criação.

Deus ordenou para as águas se separassem debaixo dos céus e sobre o firmamento “e assim se fez” (v. 7).

Depois ordenou o ajuntamento das águas na terra em um só lugar, “e assim se fez” (v. 9). Ele ordenou que a terra produzisse “e assim se fez” (v. 11). 

Ordenou que os luzeiros iluminassem a terra, e “assim se fez” (v. 15). Ordenou que a terra produzisse seres viventes, “e assim se fez” (v. 24).

Após criar o homem, ordenou a este que a erva lhe seria por alimento, “e assim se fez”. Com isso Gênesis além de assegurar que Deus é o criador, também comunica que toda a criação é objeto da ação de Deus. Enfim, toda a “criação depende de Deus ” (LASOR, 1999, p. 24).

Em outras passagens da Escritura lemos mais claramente a respeito do domínio de Deus sobre a sua criação. Jó afirma que Deus “faz chover sobre a terra e envia águas sobre os campos” (Jó 5.10). O salmo 33.9 declara: Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo passou a existir. Daniel escreve: É ele quem muda o tempo e as estações (Dn 2.21). 

O mesmo faz o profeta Naum que afirma: Ele repreende o mar, e o faz secar, e míngua todos os rios. Os montes tremem perante ele, e os outeiros se derretem; e a terra se levanta diante dele, sim, o mundo e todos os que nele habitam. (Na 1.4,5). 

O Novo Testamento narra o domínio de Cristo sobre sua obra. Os evangelistas relatam que numa tempestade, Jesus repreendeu os ventos e o mar e grande bonança se fez. O resultado disso gerou temor e admiração (Cf. Mt 8.23-27; Mc 4.35-41; Lc 8.22-25). 

Diante do exposto, aprendemos então que tanto a criação quanto o que ocorre com ela é tão somente produto da ação de Deus e do domínio que Ele exerce sobre ela. Nada do que ocorre em relação à criação é um acidente, antes, está debaixo dos propósitos de Deus. 

Desta forma somos desafiados para expressarmos nosso temor e admiração a Deus tal como ocorreu em relação aos discípulos diante de Cristo quando a tempestade cessou em obediência à sua ordem. Também somos levados a pensarmos melhor quando murmuramos por causa do calor, do frio, da chuva que caí, do sol escaldante. 

De sorte que quando reclamamos do tempo, reclamamos da obra criativa de Deus e de Sua vontade. Consequentemente, murmuramos contra o próprio Deus. A criação eternamente estará debaixo do domínio de seu criador. 



2. O Senhor expressa seu poder por meio de sua palavra
Este princípio está intrinsecamente concatenado com o princípio anterior. Não há nada que tenha sido feito que não fosse fruto da voz de Deus. Toda a criação está sujeita à sua voz. Tudo isso é resultado do poder inerente à sua palavra. 

A frase “disse Deus” é repetida 10 vezes no relato da criação. “Quando Ele falou, Ele fez, produziu, separou, formou” (GRONINGEN, 2006, p. 22).

Ao falar, Ele revelou seus propósitos e suas metas daquilo que Ele fez existir (GRONINGEN, 2006, p. 22).

Além disso, Ele proferiu a benção sobre tudo o que apareceu depois que veio a existir (Gn 2.3) (GRONINGEN, 2006, p. 15). 

Outra evidência do poder da palavra de Deus é expresso nas ordens: “haja” (vv. 3,6,14), “ajuntem-se” (v.9), “produza” (v. 11), “povoem” (v.20). É também expresso nas ordens dadas aos animais marinhos no v.22. Neste versículo, Deus determina: “sede fecundos”, “multiplicai”, “enchei”. 

A mesma coisa lemos em relação à ordem dada à terra: Está escrito: “Produza [...] seres viventes” (v. 24). No v. 26 nós lemos: “façamos o homem” (v.26). De novo, é dada a ordem de multiplicação, mas agora, destinada ao homem (v.28): “Sede fecundos”, “multiplicai”, “enchei a terra”. 

Mas quanto ao homem, o Senhor acrescenta outras ordens: “Sujeitai-a”, “dominai” (v.28). E tudo aconteceu conforme ele ordenou. Em todos estes casos fica evidente a seguinte lição: “A vontade de Deus é irresistível”. (Nota da BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA, 1999, p. 8). 

Não houve resistência da criação em obedecer à voz de seu criador. Nem mesmo o nada deixou de reagir ante a voz do Senhor. Sua voz é persuasiva, convincente e transformadora. Tais coisas revelam o poder de sua voz. E isto é uma qualidade que permanecerá por toda a eternidade.

O poder da voz do Senhor permeia toda a Escritura. Em Gênesis, lemos sobre o seu poder criativo. O próprio autor aos hebreus reconhece isso dizendo: O universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem (Hb 11.3).

Entretanto, além do poder criativo, no progresso da revelação de Deus lemos sobre outras faces do poder da voz de Deus. 

Primeiramente há o poder salvífico de sua voz. Ainda em Gênesis lemos a ordem dada a Nóe para que entrasse na Arca a fim livrar e ele e sua família da destruição causada pelo dilúvio e assim Noé fez. (Gn 7.1).

Voltando um pouco para trás, em Gn 3.15, o Senhor promete que o descendente da mulher esmagaria a cabeça da serpente. 

Neste ponto, Deus promete o messias. Tal promessa foi confirmada aos profetas, proclamada por estes e teve o seu cumprimento na pessoa de Jesus. Zacarias, ao se deparar com Cristo, quando este ainda era um bebê entoou o seguinte cântico.

Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo, e nos suscitou plena e poderosa salvação na casa de Davi, seu servo, como prometera, desde a antiguidade, por boca dos seus santos profetas (Lc 1.68,69). 

Interligado ao poder da salvação da palavra de Deus, está o poder na encarnação. Em João 1.14 lemos a solene declaração: E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai.

Com essa afirmação, o escritor tem em mente demonstrar que Cristo é a palavra de Deus. Portanto, Ele tem poder para refletir a mente de Deus, como também de revelar a pessoa de Deus aos homens (HENDRIKSEN, 2004, p. 101). A declaração de Chicago afirma: 

Jesus Cristo, o Filho de Deus, que é a Palavra (Verbo) feita carne [...]. A revelação dada por Ele foi mais do que verbal; Ele também revelou o Pai mediante Sua presença e Seus atos. Suas palavras, no entanto, foram de importância crucial, pois Ele era Deus, Ele falou da parte do Pai, e Suas palavras julgarão ao todos os homens no último dia.

Inevitavelmente, podemos verificar algumas implicações na vida do cristão diante da atestação bíblica sobre o poder da palavra de Deus. Dentre tais implicações listamos três. A primeira, assim como no caso anterior, é a adoração e temor ao Senhor, uma vez que seu querer é expresso pela sua voz. 

A segunda é a confiança no fato de que o Senhor cumpre integralmente com tudo aquilo que Ele diz. Finalmente, a terceira trata-se de nossa confiança exclusiva da nossa salvação a Cristo, a palavra de Deus que se encarnou visando à salvação daqueles Nele creem. 



3. O Senhor é único digno de adoração. 
Este princípio é resultado dos dois acima abordados. Pelo fato de que Deus tem domínio sobre toda a criação e que sua palavra é expressão de seu poder, Ele é digno de toda a adoração.

E esta é uma qualidade divina que é eterna. Em toda a seção lida, a saber, 1-2.1-3, Moisés faz um relato minucioso sobre a atividade criadora de Deus. 

Segundo o escritor, Deus criou todo o cosmos, de sorte que não há nada nele que não tenha sido fruto da obra de Deus.

Além disso, Deus criou o homem do pó da terra e o colocou sobre a terra para governa-la. Já apontamos que o verbo hebraico bará para o qual traduzimos por criou comunica a idéia de que Deus criou todas as coisas a partir do nada. 

Trata-se de uma palavra chave que ocorre sete vezes no relato da criação (LASOR, 1999, p. 24). Com isso, Moisés intenta comunicar que Deus foi o único agente criador e ao final do relato, Moisés narra que Deus, como o criador, descansou de toda a sua obra (2.3).

Ao narrar estas coisas, Moisés tinha como objetivo combater o politeísmo do Antigo Oriente e os diversos relatos da criação com os quais os hebreus tiveram contato.

O sol, a lua, as estrelas e os planetas eram considerados deuses pelos povos. Eram as principais deidades e nem sequer tiveram seus nomes mencionados, com o objetivo de rebaixá-los à categoria de simples criaturas. 

Os grandes animais marinhos eram tidos como rivais dos deuses criadores. O próprio faraó era tido como uma divindade a ser cultuada. Havia também a crença de que por intermédio das águas, a criação ocorreu. 

Sendo assim, o relato da criação em Gênesis 1.2.1-3 tinha como objetivo fazer uma distinção com os demais relatos da criação no Antigo Oriente, bem como contrapor a idéia de que os elementos da natureza deveriam ser recebidos como deuses. 

Ao mesmo tempo, a narrativa da criação objetivava imunizar um povo que era tentado a adorar os deuses das outras nações (LONGMAN III, 2009, pp. 82,83). 

O que ocorria com as demais nações era aquilo que deveria ser evitado em relação aos hebreus, ou seja, ao invés de adorarem a criação, os hebreus deveriam adorar Àquele que havia sido mentor e executor da mesma. Por isso, o primeiro mandamento ordenava: “Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20.3). 

O problema da inversão na adoração foi um pecado também denunciado no NT. O apóstolo Paulo ao discorrer sobre a condição de pecadores de todos os homens e a tendência de adorarem a criatura ao invés do criador disse: “Pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador” (Rm 1.25).

O relato da criação não apenas demonstra que Deus é o autor da criação, como também deixa claro que Ele deverá ser sempre o centro da adoração do homem. O que ocorre é que os olhos do homem têm a inclinação natural estarem fitos nas bênçãos de Deus e não no Deus das bênçãos. O passo seguinte é uma admiração exacerbada que logo conduz à adoração. 



Quando isto ocorre, pratica-se idolatria semelhante àquela dos egípcios. Todos devem ter em mente aquilo que Tiago declara: Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança (Tiago 1.17). O Senhor é o autor das bênçãos e deve ser reconhecido e adorado por isso. 

Portanto, somente a Deus é devida toda honra e toda a glória. Não somente a Ele, mas igualmente, à pessoa de seu Filho, que juntamente com o Pai criou todas as coisas. O evangelho de João declara que “todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez” (João 1.5). 

Em Ap 5.13, João reitera o merecimento de Cristo em receber todo do louvor em igualdade com o Pai escrevendo: “Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos”. Nestas palavras, João deixa claro o princípio eterno de que Deus e Seu Filho são dignos de louvor. Princípio este que é eterno e que se apresenta na Bíblia desde o relato da criação. 

Conclusão
O relato da criação não somente comunica ao homem o modo como veio existir, mas também podemos vislumbrar princípios eternos e imutáveis relacionados à pessoa do Criador. De acordo com nossa reflexão, neste relato verificamos três destes princípios. São eles: o Senhor tem domínio sobre sua criação, o Senhor expressa seu poder por meio de sua palavra, o Senhor é único digno de adoração.

Que a graça de Deus, manifestada por meio de Cristo, nos ajude a enxergarmos tais princípios que permeiam em toda a Escritura. Mas também, que mediante a graça de Deus e da pessoa de Seu Filho, possamos entender as implicações práticas para a nossa vida. A graça seja conosco. 

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